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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Há pouco, tirei o carregador de um tablet da tomada, Silvia perguntou o que estava fazendo e respondi. Esse fato insignificante e principalmente seu contexto – a cirurgia dela feita na terça, com todo o esforço de planejamento, prevenção, execução, etc, da minha parte – me trouxeram à memória que, na psicoterapia que fiz na década de 1990, reclamava constantemente que era obrigado a ficar passivo diante de tudo; nos anos posteriores, bem que tentei mudar aquela situação, mas meu sucesso foi muito limitado. Tal passividade só acabou quando vim morar em Curitiba, tanto que Silvia não acredita que existisse.
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É bem incomum encontrar alguém com paralisia cerebral severa em bares, restaurantes, boates, shows, rindo, divertindo-se, alegre, conversando, etc – chegar a tanto não foi nada fácil para mim. Por isso, às vezes uma pessoa – geralmente (não sempre) com algum parente ou amigo com deficiência – fica tão empolgada em me ver nessas situações que vai falar comigo – nesse aspecto, não há diferença entre Curitiba e Recife.
Foi o que ocorreu neste sábado numa pizzaria, quando um homem me abordou do nada, dizendo que tem um filho de 28 anos com PC, com quem se comunica através de mimica e gestos, mora em Arapoti, no norte do Paraná, mostrou fotos, etc. Ele estava falando como se eu tivesse algum déficit cognitivo ou fosse muito infantil, para mostrar que não era o caso demonstrei expressivamente desagrado (um pouco fingido) quando falou que foi à Argentina e trouxe a camisa de Messi para o filho, disse que sou casado com Silvia, tenho uma filha e salto de paraquedas. Quinze minuto depois, sua esposa também foi falar conosco emocionada ao ponto de beijar uma foto de Clara que Silvia mostrou no celular. Esta sintetizou a emoção desse casal como “puxa, meu filho bem que podia estar aqui!”.
Inicialmente, pensei que o filho deles tem algum déficit cognitivo, mas nada do que disseram ao longo da conversa aponta nessa direção. Creio ser mais provável que tal déficit não exista, eles sabem, mas não encontraram uma escola que aceitasse o alfabetizar nem um profissional que desse uma forma de comunicação alternativa eficaz. Foi por muito pouco que escapei do mesmo destino, graças a uma pedagoga que trabalhava na segunda clínica de reabilitação em que me tratei e me alfabetizou aos 6 anos de idade, e aos meus pais, que me incutiram o valor da educação – ao ponto de ter sido um autodidata –, da cultura e da leitura; quando comecei a ter este hábito, meu pai ia atrás de qualquer livro que eu pedisse, por mais besta que fosse; tal pedagoga percorreu todos os colégio de Recife e nenhum me aceitou.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara estava refratária comigo ontem à noite até que, na hora de dormir, cheguei triste ao seu quarto (isso nada tinha a ver com ela), exclusivamente pela minha expressão facial – apesar dos sinais de tristeza nesta estarem bem sutis e de eu não ter falado um pio – ela percebeu como me sentia, disse “eu te amo”, saiu do quarto alardeando para Silvia “eu amo o papai” e me abraçou e beijou. Clara já sabe quando fico triste, mesmo que eu nada diga.
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A marcação à distância de consultas médicas e outros procedimentos do meu plano de saúde raramente funciona e, na maioria das vezes, seus usuários acabam tendo de recorrer ao atendimento presencial no hospital que este mantem em grandes cidades – não estou reclamando, pois a unidade de Curitiba é muitíssimo melhor que a de Recife. Legalmente, idosos e pessoas com deficiência têm direito a atendimento preferencial, sem estas terem prioridade sobre aqueles – mesmo assim, algumas vezes o atendimento do hospital daqui me chama antes de muita gente com mais de 65 anos, furando a fila.
Foi o que aconteceu na última sexta, quando fomos lá para solicitar a biópsia do material retirado numa endoscopia que fiz no dia anterior. Em seguida, chegou uma mulher que já tinha ido lá quatro vezes para pedir um procedimento – na última, o sistema caiu na hora de fechar o pedido – para a mãe muito idosa, doente e que estava esperando no carro por ter dificuldade de locomoção, havia falado com um diretor do hospital, que garantiu que era só levar o papel lá, e se desesperou porque a coordenadora do atendimento se recusou a violar as regras e a mandou para a fila. Durante a discussão, ficamos muito desconfortáveis, tive vontade de dizer algo como “me permitiram furar a fila e o caso dela é muito mais grave”, mas fiquei paralisado por não saber qual seria a reação da coordenadora – que bem podia ser mandar todos para a fila, sem resolver o problema daquela mulher –, além de estar preocupado com Clara, que estava doente e tinha ficado em casa.
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Clara foi a uma médica na quinta-feira. Na sala de espera, Silvia contou que esta tinha urso, dragão e outros bichos de brinquedo, ao entrar no consultório Clara foi logo os procurando, encontrou, ficou brincando com eles e, ao ver que a consulta estava terminando, fez questão de guarda-los, para encanto da médica. Esse tipo de comportamento – que ainda é intermitente, não constante – deve-se claramente ao meu exemplo, já que a atitude do resto da família geralmente é diferente. Dados a miríade de coisas do cotidiano e seu afastamento de mim, fico surpreso que involuntariamente esteja ensinando Clara a ser organizada.
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Clara vem tornando-se bem carinhosa, embora pouco comigo – ficou mais difícil ela me abraçar devido à descoordenação motora e beijar, por se incomodar com minha barba, que raramente é feita. Este fim de semana foi diferente, creio que por ter a botado para dormir no sábado e estar barbeado – ela até falou “te amo, papai” pela primeira vez!
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Ontem à tarde, Silvia foi ao teatro com suas filhas deixando Clara com nossa diarista e comigo. Ao entrar no quarto de Clara a encontrei deitada no chão querendo dormir, desconfortável, dei um travesseiro, mas não entendeu o que eu queria, sentou-se em cima deste, a diarista explicou minha intenção, ela disse “não” por birra, mas logo botou a cabeça no travesseiro e adormeceu. Naquele momento, a futura cirurgia de Silvia – que praticamente não tem risco, sendo o perigo real haver uma pancreatite antes – me fez pensar como faria para cria-la com todas as minhas limitações físicas e financeiras se esta morresse, meu peito começou a doer e fui para o computador para ocupar minha cabeça com outras coisas. Pelo WhatsApp Silvia me perguntou por Clara e, ao responder, com auto desdém quase disse algo como “o pai só serve quando a mãe não está”. Após acordar, Clara foi carinhosa comigo, falou repetidamente “adoro papai” – foi a primeira vez que ela disse algo desse tipo! – e concluí que a principal via pela qual a descoordenação motora a afastou foi me impedir de continuar a botando para dormir.
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Neste mês, soubemos que Silvia precisa retirar a vesícula – esta deve ter sido a causa da dor que ela sentiu no carnaval. Como antes do seu parto, sondei meu irmão e minha melhor amiga para virem nos ajudar e ele logo se dispôs a fazê-lo, apesar de ser difícil se a cirurgia fosse em abril. Acontece que se Silvia estivesse com pedras na vesícula, a cirurgia poderia esperar, mas está com microcálculos que podem migrar para o pâncreas, o que gera um alto risco de vida e, portanto, esta deve feita o mais rápido possível. Como nossas empregada e diarista se ofereceram para dormir aqui em casa, decidimos segui essa recomendação médica e nos virarmos com os recursos que temos em Curitiba, sem ninguém de longe – só divergimos quanto a ela querer ficar sozinha no hospital. Estamos até um pouco satisfeitos por podermos enfrentarmos esta situação, mas racionalmente acho que nossa tranquilidade não tem muito fundamento e deve-se à enganosa ausência de grandes desconfortos em Silvia, pois uma pancreatite pode ser fatal.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Silvia diz algumas vezes querer que me encarregue das futuras lições de casa de Clara, o que vejo com ceticismo pela minha dificuldade de comunicação. Ontem à noite, enquanto ela trabalhava nossa diarista e eu ficamos cuidando das meninas, fazendo o possível para não a requisitarem. Sua filha mais nova gosta muito de mim, quis que eu a ajudasse no dever de ciência e consegui até com certa facilidade, inclusive porque já há algum tempo esta consegue ler o que digo pela prancha de comunicação. Isso reduziu meu ceticismo quanto a fazer o mesmo com Clara.
Clara está tão afastada de mim que às vezes até me repele, o que vem me entristecendo muito. Portanto, tento facilitar as coisas com as outras meninas.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Faz muito tempo que Clara não dorme quando saímos à noite e a deixamos sozinha com a diarista. Nesta quarta, Silvia foi ao aniversário de uma colega de sua filha mais nova, eu esperava que Clara ficasse acordada até a mãe voltar, mas a vi com sono e se deitando no sofá, fui para perto e ela adormeceu. Apesar de seu afastamento, ainda dou alguma tranquilidade a Clara.