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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
O termo Übermensch usado por Nietzsche geralmente é traduzido como Super Homem, mas há filósofos que preferem além-do-homem porque se refere a um tipo de pessoa capaz de se auto superar, inclusive em suas fraquezas e fragilidades, e não que tem alguma superioridade sobre os outros. Por esse conceito tocar em algo profundo da psique humana e/ou pela difusão das ideias de Nietzsche, é frequente que alguém com deficiência que consegue superar as expectativas da sociedade e da família ser chamado de Super Homem (ou Mulher). Com este substrato, um grande segmento da mídia gosta de mostrar pessoas com deficiência “vencedoras” para validar a proposta do neoliberalismo progressista, de que qualquer problema social pode ser resolvido pelo mercado, esforços individuais e reconhecimento para minorias e as mulheres – é o que chamo de ideologia da superação. Acontece que ninguém gosta de viver lutando contra o próprio corpo – no caso, as partes do cérebro responsáveis pela coordenação motora – e, embora tenha conhecido um homem com PC que emoldurava esta condição com a filosofia nietzschiana, as outras pessoas com essa deficiência que vi se pronunciarem a respeito recebem a tal elogio com certo incômodo, irritação, ranger de dentes, não acharam muita graça – particularmente, nesse contexto sempre lembro da música “Cowboy Fora da Lei” de Raul Seixas. O único aspecto inequivocamente bom que vejo na auto superação é que, ao menos no meu caso, foi um forte atrativo para as mulheres😉
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Semanas atrás, ao pensar no que chamo de "Complexo de Mulher Maravilha" – o qual, hoje, acho que, dentro da Psicologia Analítica, deveria ter considerado um novo arquétipo surgido no Século XX (ignoro se algum psicólogo junguiano já tratou disso) – enumerei as (seis) mulheres que conheci que o tinham. Uma é amiga de Silvia, as outras cinco foram ou são ligadas a mim, me surpreendi ao constatar que todas estas se apaixonaram por mim, embora duas não tenham ido além da amizade, uma por falta de interesse da minha parte e a outra por incapacidade de ter um relacionamento com um homem com deficiência; o ímpeto de resolver tudo para todos não está necessariamente acompanhado de um grande poder de realização, afinal eram mulheres de carne e osso, com seus limites. Foi desconcertante perceber um padrão depois de décadas.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
O governo estadual está promovendo o Paraíba Beach Games, um dos quais foi o circuito brasileiro de vôlei de areia. Como eu e minha enteada mais nova – que gosta bastante de mim, tanto que me obedece mais do que Clara – curtimos muito vôlei, fomos às semifinais deste. Não sabia direito o que ia encontrar em acessibilidade, em particular como a cadeira de rodas chegaria à arena através da areia. Demos a sorte de encontrarmos logo uma vaga de estacionamento a dois quarteirões de lá, as meninas ajudaram a superar as irregularidades da calçada, na praia havia esteiras de borracha para cadeiras de rodas, o setor reservado para pessoas com deficiência era a área VIP – mas contei só 5 dessas pessoas, incluindo eu –, o que foi motivo de inúmeras brincadeiras e, como chegamos cedo, pude escolher o melhor lugar. Quando os jogos acabaram, minhas enteadas conseguiram tirar fotos com os jogadores que foram às últimas Olimpiadas – não o fiz porque isso implicava descer uma arquibancada bem íngreme, com grande risco de queda. De novo, fiquei pensando que o caminho para gostar de João Pessoa é a praia.
Há três semanas, os moradores do nosso prédio organizaram a exibição de um filme infantil numa sala do condomínio. Como já o tinha visto no cinema, Clara não ficou na sala, mas finalmente se entrosou com as outras crianças e fez ao menos uma amiga. Desde então, nos fins de semana ela tem descido, corrido, brincado ao ar livre em vez de ficar enfiada em dispositivos eletrônicos, o que raramente o clima de Curitiba permitia.
Na semana passada, minha enteada mais nova falou “homem não serve para nada” e só depois se tocou que sou um – me limitei a rir. Ontem, ela repetiu a mesma frase, também só se tocou da minha presença ao acabar de falar e tentou remendar dizendo “é que o tio é tão legal que parece uma mulher”! Foi de lascar, às vezes ser o único homem da casa não é mole😄
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Quem morou em Curitiba e se muda para João Pessoa, em poucas semanas fica espantado com o grau de infração às leis de trânsito, com a consequente imprudência, e já ouvi gente exagerar que sente-se na Índia ou no Paraguai – não chega a tanto. Desde o início da Internet na década de 1990, nunca fiz um cadastro que pedisse a imagem do CPF e aqui já vi dois que a requereram – é uma exigência tão descabida que quem recebeu tais cadastros contentou-se com a face do RG que tem o CPF mas, por via das dúvidas, peguei essa imagem na Receita Federal. Num desses cadastramentos, fui solicitado a corrigir o RG porque faltou os pontos e, ao tentar fazê-lo, constatei que o campo correspondente só aceitava números – pensei que algum funcionário engraçadinho deve ter lido Kafka(!); contornei o problema dizendo, noutro campo, que a solicitação era incompatível com o formulário, mas alguém menos desembaraçado poderia ter ficado sem saber como proceder.
No nosso primeiro encontro, adverti Silvia que talvez fosse melhor morarmos em Curitiba em vez de Recife porque ela acharia ruim a desorganização do Nordeste e, quando surgiu a ideia de virmos para João Pessoa, esta foi minha primeira objeção. Já aqui, até recentemente pouco me incomodava com esse problema diretamente, por ser esperado, mas sentia muita raiva ao ver Silvia desatar a reclamar dessa falta de organização e querer voltar para Curitiba – num segundo momento, a raiva voltava-se contra mim mesmo, por ter concordado com essa mudança. Essas situações não acontecem há um mês ou mais e, ao menos por hora, ela está gostando de João Pessoa, porém nesta semana parece que atingi meu ponto de saturação com o fato de frequentemente me deparar com coisas mais enroladas, complicadas, difíceis aqui, mesmo em comparação com Recife – além dos exemplos dados no parágrafo anterior, poderia citar inúmeros outros.
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Além desta imagem mostrar que Clara tem uma grande habilidade de desenhar à mão livre, ainda mais para uma criança de 8 anos, é um exemplo de que em vez de castelos, princesas, príncipes encantados e afins, ela gosta de pintar monstros. Freud explica, é nisso que dá ter um pai meio monstruoso😀
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Há poucos meses, Silvia perguntou se Clara gosta de ter um pai com deficiência e a resposta foi um “sim” categórico. Além de ser desconcertante, aquilo me deixou preocupado por esta ainda nada ter sentido de toda a carga de preconceito e discriminação que existe contra pessoas com deficiência – ou talvez esteja sendo pessimista demais, já que, nesse aspecto, a situação melhorou muito desde a minha infância.
Nossa empregada é evangélica, meio assustada por minha simpatia por personagens diabólicos, ao ver uma propaganda do último filme de Hellboy brincou que eu deveria fazer um assim e Clara respondeu que o papel poderia ser de “vampirinho cadeirante”! Não me considero especialmente alegre, e sim risonho e parece que isso infundiu alegria e bom humor nela.
Quando Clara nasceu, decidi que seria um pai carinhoso e afetuoso, como fizeram muitos homens da minha geração, ao menos na classe média urbana, em reação à dificuldade dos próprios pais de lidar com sentimentos e emoções. Não vi ou esqueci completamente do bilhete ao lado de Dia dos Pais até, na semana passada, Silvia chamar minha atenção para ele e, para mim, o que mais se destacou foi Clara dizer que sou amoroso. Esse episódio me lembrou de uma foto da sua formatura na educação infantil em que ela estava chorando porque ia se afastar das professoras com quem tinha passado um ou dois anos, a qual me levou a comentar num grupo familiar “Clara é amorosa”. De vez em quando digo a Silvia que Clara nos espelha, nos vemos nela.
*clarices: atitudes e coisas de Clara.
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Geralmente fico constrangido em “engatinhar” na presença de quem não seja um familiar, amigo ou fisioterapeuta, às vezes a ponto de pedir para alguém me levantar e andar comigo. Neste sábado, fomos à praia com as meninas. Clara foi logo às piscininhas deixadas pela baixa da maré, após Silvia passar protetor solar em mim fui para lá – a uns 5m do nosso guarda-sol – sozinho pouco me importando com os olhares que atrairia, algum tempo depois Silvia me levantou e fomos ao mar. Após uns 30 minutos, as duas saíram deste, onde fiquei muito mais tempo até decidir voltar a brincar com Clara nas piscinas. Estava a uns 12m de Silvia, ela não me ouviria mesmo se gritasse – o que também seria embaraçoso –, não sabia quanto tempo ela demoraria para perceber se eu acenasse e queria poupá-la do esforço de caminhar comigo na areia, o que me fez resolver “engatinhar” até Clara e dessa vez não houve jeito de ignorar o grande estranhamento de dezenas de pessoas – muitas vezes, temos de deixar a vergonha de lado. Nos primeiros metros, um adolescente – que me pareceu não ser daqui – começou a me oferecer insistentemente ajuda, perguntou onde estava meu pessoal, apontei com a mão, falou que podia chamar alguém de sua família para auxilia-lo a andar comigo – isso tudo sem estranhamento, pena e preconceito, ao menos não que eu notasse em suas palavras, tom de voz. gestual, etc; obviamente, no fim ele me viu brincando com Clara e sua irmã mais nova. Desse dia, o que mais vou lembrar é desse momento de solidariedade.
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Passei boa parte da infância morando na orla marítima de Olinda, onde ia muito à praia, adquiri uma habilidade – insuspeita para quem ver minha descoordenação motora – de lidar com o mar mesmo com ondas de certa altura e até as pegava com uma boia circular de isopor, a qual sempre assava a parte inferior dos meus braços até meus pais envolverem-na com panos – preservei em grande medida aquela habilidade, como andar de bicicleta para muita gente sem deficiência. Quando entro num mar calmo, sem ondas e cálido fico num estado que só pode ser descrito como êxtase e preciso fazer um esforço consciente para sair, para não me queimar do sol, mas mesmo um meio bravio e frio já me faz muito bem.
Numa noite de julho, ao chegar em casa Silvia me encontrou um tanto desesperado com os problemas que estamos enfrentando, perguntou o motivo e respondi “parece que tudo está dando errado”. A primeira providência que ela tomou para me reanimar foi, na manhã seguinte, irmos com Clara à praia que fica a 180m daqui, a qual não é exatamente paradisíaca, mas é uma praia; como seu carro estava na oficina, fomos a pé e o trajeto não é isento de obstáculos a uma cadeira de rodas, mas não exige um esforço excessivo do condutor; grande parte das praias de João Pessoa tem uma faixa de vegetação com trilhas e percebemos que a cadeira pode andar nas bordas destas, de modo que Silvia só teve de caminhar comigo 5 ou 10m até onde fincou nosso guarda-sol. Desde então, digo repetidamente que talvez a única coisa que pode mudar minha opinião negativa sobre morarmos em Cabedelo é ir à praia com mais frequência, aonde fomos de novo no último sábado e o que agora pretendemos fazer todo fim de semana.
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Como Curitiba é duas vezes maior do que João Pessoa e a fluidez do trânsito em ambas é equivalente, muita gente imagina que agora temos mais facilidade em ir aonde queremos ou precisamos no dia-a-dia. O Diabo está nos detalhes: nossos bairros em ambas têm farmácias, supermercados – com preços mais altos aqui – e muitos pequenos estabelecimentos comerciais, mas lá morávamos perto de vários bons colégios aos quais as meninas às vezes iam a pé – Cabedelo não tem nenhum –, e de clínicas e hospitais, inclusive o do meu plano de saúde, enquanto que aqui a maioria destes é mais longe. Tal diferença deve-se a que passamos a morar ao norte, fora de João Pessoa, e em Curitiba ficávamos bem dentro da principal cidade. Cansei de avisar sobre a importância do percurso a esses locais, intuitivamente não gostei do primeiro vídeo feito por Silvia do nosso atual bairro porque seu isolamento era visível, usamos o Google Maps para fazer estimativas de tempo, mas eram abstrações, bem diferente de viver a realidade concreta. Este problema tem pesado sobre nossa qualidade de vida em Cabedelo
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No penúltimo domingo, passeamos na orla marítima de Cabo Branco, o bairro mais nobre de João Pessoa, e vimos que há vagas de estacionamento para pessoa com deficiência a cada 500m. O contraste é grande com a falta quase total nas outras partes da cidade que já conhecemos.
Parece que desenvolvemos imunidade contra os micróbios locais, pois não tivemos mais infecções estomacais ou intestinais. Clara e sua irmã mais velha não tiveram mais doenças respiratórias e de garganta, talvez porque, com a chegada do inverno, o uso do ar condicionado diminuiu. E não tive mais esses problemas desde que cheguei aqui, exceto uma rinite ocasional. Este era um dos objetivos de Silvia para vir a João Pessoa.
Discordando de mim, Silvia resolveu não ter mais empregada, o que desde fevereiro eu dizia que não tinha dado certo, já que ficava exausta quase todos os dias e até adoecia. Ela tentou resolver o problema fazendo as meninas ajudarem em casa, mas isso também era trabalhoso, conflituoso e a exauria. Durante meses, contra sua vontade tentei sem sucesso arranjar uma empregada com os poucos contatos que tenho aqui, até que um porteiro do nosso prédio o fez, o que tem nos trazido mais tranquilidade. Acabei essa história com a sensação de ser um estorvo para Silvia, por não poder dividir o trabalho doméstico com ela, de modo a prescindirmos de uma empregada e do custo correspondente.
O progressivo conhecimento da região metropolitana e de seu mercado vem me permitindo reassumir algumas tarefas.
Nosso Dia dos Namorados foi de filme de terror, tangenciando a tragédia. A remuneração de Silvia correu um sério perigo. A situação dos meus sogros continua piorando e Silvia, tendo impulsos de voltar para Curitiba, o que me dá raiva, tristeza e um pouco de depressão.
Temos progredido, mas as coisas ainda estão difíceis e arriscadas.
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