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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Quando uso minha prancha de comunicação, um dos expedientes para agilizar a conversa é, se meu interlocutor perceber de início o que pretendo dizer, falar logo para me permitir passar à palavra ou frase seguinte – é um autocompletar humano. Às vezes Silvia usa tal coisa para me sacanear, colocar nos meus pés palavras completamente diferentes das que sabe que quero dizer. Ontem à noite, começamos a conversar sobre o filme Doutor Jivago, que adoramos, ela disse “eu era apaixonada por Omar Sharif”, apontei para mim mesmo, gesto que ela entendeu perfeitamente significar “eu também era apaixonado por Julie Christie” mas, em vez disso, perguntou “você também era apaixonado por Omar Sharif?” e tirou onda que eu era gay
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Há uns dois meses, Silvia entrou no nosso quarto na hora em que eu estava arrumando a cama, disse “é um marido espetacular, um pai espetacular”, inicialmente não compreendi o porquê daquele elogio, pois assumi tal tarefa há algum tempo quando a empregada não vem e é meio insignificante diante do que ela faz nesses dias, até perceber que o motivo é que a grande maioria dos homens se nega a fazer trabalhos domésticos, ainda mais se houver a desculpa de ter uma deficiência física. Depois ela me perguntou se teria a mesma atitude se não tivesse paralisia cerebral, ao que primeiro respondi que sim, pois tem muito mais a ver com o clima ideológico da juventude brasileira nos anos 1980 – que absorvi de algum modo, apesar de meu forte isolamento social – do que com a deficiência, mas em seguida fiquei em dúvida porque a carreira que provavelmente seguiria costuma gerar grande, até extremo conservadorismo. De fato, é conhecido que pessoas de uma categoria que é objeto de discriminação e preconceito tenham o mesmo comportamento em relação a outro grupo que também está nessa situação – para o caso de quem PC veja aqui. Assim, sou cético com a ideia de que ter uma deficiência torna mais improvável que alguém seja machista, racista, homofóbico ou até discrimine quem tenha outro tipo de deficiência.
Na tarde da penúltima terça, estava sozinho quando vi nuvens escuras, mas não fechei logo a vidraça da varanda por causa do calor e na esperança de que não chovesse. Choveu demais e granizo, o que me fez fecha-la com algum esforço. Em seguida, fui verificar as janelas dos quartos e estavam todas abertas. Comecei a fechar uma a uma, quando cheguei ao nosso este estava literalmente alagado, contive o impulso de disparar em direção à janela, senão ia escorregar e cair, e engatinhei lentamente até esta debaixo de chuva grossa, vento forte e granizo. Cheguei a começar a enxugar o chão com um pano, mas então Silvia e as meninas chegaram. Pareceu coisa de cinema catástrofe!
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
No primeiro semestre, minha mãe sofreu uma queda em que fraturou o fêmur pela segunda vez e passou alguns meses sem andar, o que me afligiu e fui com Silvia e Clara a Recife no início de novembro, já que fazia três anos que não via minha família, passando por quatro aeroportos diferentes.
Por lei, as companhias aéreas são obrigadas a disponibilizar um funcionário para ajudar o embarque e desembarque de pessoas com deficiência. O que fez tal função no aeroporto de Brasília era meio grosso, Silvia demorou um pouco para ajeitar Clara e a bagagem no avião que nos levaria a Recife, causando um engarrafamento no túnel de embarque, por três vezes ele se referiu a ela como “a mãe dele” falando aos outros passageiros e eu pensava “mãe é o diabo que te carregue”; irritado, cogitei levantar a mão na esperança de que ele visse minha aliança, mas não o fiz pela baixa probabilidade de sucesso – já estou desenvolvendo uma impressão ruim dos brasilienses, pois na penúltima vez que passei por aquele aeroporto o tratamento que nos deram também não foi bom. Na volta por Guarulhos, vendo Clara no meu colo o funcionário que auxiliou nossa saída da aeronave perguntou a Silvia “são irmãos?” e, para seu embaraço, ela respondeu “não, pai e filha”; no embarque para Curitiba, a funcionária responsável se referiu a ela como “a esposa dele” e a sensação que tive pode ser expressa como “até que enfim, alguém inteligente” – será por que era uma mulher? Não ouvi asneira alguma nos aeroportos de Recife e Curitiba.
Após tal viagem, algumas vezes encontrei com pessoas da minha faixa etária e, numa dessas ocasiões, senti um grande estranhamento porque ainda pareço ter 20 anos a menos. Mas Silvia não é menos jovial, além de muito bonita e, se não fosse o raciocínio implícito “se precisa de cuidado é criança”, na pior das hipóteses achariam que temos a mesma idade.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Uma vez vi uma amiga da minha família de origem falar com admiração a alguém que meu pai tinha tanta autoridade com os filhos que, às vezes, bastava olhar para um para este parar, pensar no que estava errado e se corrigir. Por outro lado, ele e os irmãos tinham grande dificuldade em expressar emoções e sentimentos e compreender os dos outros e passei a vida ouvindo parentes se queixarem a respeito, embora fossem pais exemplares, capazes de fazer os maiores sacrifícios pelos filhos. Imaginava que ambas as características eram as duas faces da mesma moeda, quando Clara nasceu decidi que não seria um pai afetivamente distante ainda que isso tirasse minha autoridade, a qual, de qualquer forma, supostamente não existiria devido à dependência econômica e física. Errei redondamente: ontem à tarde, ao descer da minha cadeira adaptada fiquei olhando em silêncio Clara desembrulhar um chocolate no sofá e, quando percebeu que estava observada por mim, ela disse “vou jogar no lixo, papai” – se fosse outra pessoa que estivesse a vendo, com certeza ela teria deixado a embalagem ali e sujado o sofá.
Inversamente, horas depois ela conversou com uma amiga que mudou-se para São Paulo, de repente perigosamente começou a dançar de pé na beira do sofá, falei um arremedo de “Clarinha” num tom mais alto – não consigo pronunciar nada parecido com “Clara” –, o que chamou a atenção de Silvia e esta explicou a ela que estava correndo risco de dar uma queda feia.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Faz tempo que o acesso à Internet é tão essencial quanto o fornecimento de energia, água, etc, e Silvia trabalha em home office desde que engravidou, anos antes da pandemia. Na penúltima terça, a fibra ótica que faz nossa conexão foi cortada e o provedor deu um prazo mínimo de 40 horas para consertar – para complicar, a rede móvel da nossa operadora de celular é péssima onde moramos. Obviamente, os transtornos foram se acumulando, o maior foi Silvia ter de ir trabalhar no apartamento da mãe usando um notebook lento. Dois dias depois, ela saiu levando a primeira filha consigo, a segunda para o colégio e fiquei sozinho com Clara. Antes da empregada chegar o interfone tocou, percebi que era o técnico que veio fazer o conserto, me vi diante da perspectiva de ele ir embora e ficarmos sem Internet não sei mais quanto tempo – dá para adivinhar o palavrão que pensei Calmamente, enviei mensagens para o WhatsApp da portaria, vi que estas não estavam indo, alterei a configuração do tablet e consegui autorizar a entrada do técnico – em seguida, a empregada chegou e o atendeu. Foi sorte não ter ficado nervoso, o que acentuaria a espasticidade e me impossibilitaria de resolver a situação, mas também houve uma dose de prevenção pois, antes de Silvia sair, pedi para botar meu óculos e mantive o tablet ao alcance do meu pé – ficar sozinho com Clara sempre liga meu alerta.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara se deitar no meu colo tornou-se rotineiro, ainda assim em duas das três vezes que isso ocorreu nos últimos dias Silvia parou para nos fotografar e, quando essa foto foi tirada, estava saindo apressada. O inusitado dessa foto é só existir, a situação ainda se destacar aos olhos de Silvia. Talvez ela ainda tenha fascínio por minha paternidade – objetivamente é raríssimo um homem com paralisia cerebral severa ser pai –, o modo como amo Clara, me empenho em cuidar desta, etc. Do mesmo jeito, ninguém mais que Silvia sabe o quanto foi difícil, complicado para mim aceitar tal condição, até considerar Clara a melhor coisas que me aconteceu. Ao ver nossa filha deitada no meu colo, Silvia falou “mas que folga!”, ao que Clara respondeu “é que gosto do papai”.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Estou casado com Silvia há 7 anos e contínuo a achando linda. Por outro lado, há um ou dois meses à noite, num momento eu estava bem relaxado sobre uma coberta branca ela falou algo como “você está parecendo um garoto-propaganda”, o que inicialmente não entendi direito até ela querer tirar uma foto, ato que afetou meu relaxamento, mesmo assim ela gostou da foto, mas não vi a menor graça, beleza nesta, tanto que não pedi para me enviar. Aparência física ainda é um assunto complicado para mim.
Sábado passado à noite, enquanto assistíamos TV na cama Clara se deitou sobre as pernas de Silvia para dormir, comecei a acariciar a mão dela presumindo que isso não demoraria, fiquei numa postura em que meu corpo se contorcia, tentei retirar minha mão várias vezes, mas em todas Clara exigia que continuasse sobre a dela. Foi um episódio aparentemente insignificante, mas que mostra que Clara faz questão do meu carinho apesar dos pequenos acidentes causados pela descoordenação motora.
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