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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
De vez em quando, alguém com paralisia cerebral angustiado, aflito por não ter relacionamentos amorosos me pede ajuda e fico sem saber o que dizer. Para começar, só tive sucesso com as mulheres de 1999 a 2009 – minha história com Silvia começou em 2000 –, embora uma tenha se apaixonado por mim antes desse período e outra, depois. Isso se dava pela Internet, principalmente porque meu site ganhou alguma fama, e após o foco desta passar para redes sociais tal sucesso acabou. A maioria das que se interessaram por mim o fez espontaneamente, com nenhum ou poucos jogos de sedução da minha parte, nos quais sou péssimo, quase desastrado – ter repelido involuntariamente Silvia naquele ano o exemplifica e posso citar vários outros erros imbecis que cometi. Obviamente isso implica que tenho atrativos fortes o suficiente para funcionarem independentemente das minhas intenções – a própria deficiência física o foi para algumas mulheres –, mas os compreendo só em parte, alguns parecem inatos, outros desenvolvi com propósitos inteiramente diferentes de atrai-las – e eu teria muita dificuldade em ensina-los. Por fim, mesmo na época em que eu nada tinha conquistado que considerasse significativo muitas vezes diziam que era um exemplo, uma lição de vida, prova da existência de Deus, etc, o que me fez adquirir certo anti-heroísmo, uma aversão a fazer generalizações a partir da minha trajetória pessoal – não dou para ser coach! Nas ocasiões em que uma pessoa solicita minha ajuda nessa questão, acabo eu mesmo ficando angustiado, tanto por saber como é sofrido a falta de sexo e amor quanto por ter bem poucos conselhos a dar.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em fevereiro, um incidente inquietante ressaltou os problemas da não-formalização do meu relacionamento com Silvia, que inclusive estava num limbo legal até 2020, e me fez lembrar do velho fantasma de ter de criar Clara sozinho se algo acontecer a ela – devido à impossibilidade de assinar, demoraria um tempo indefinido para Clara receber pensão e seguros, no qual eu teria de sustenta-la com meus poucos recursos, aceitar que um terceiro fosse seu representante legal, etc. Paralelamente, Silvia começou a ter dores e outras sensações no pescoço e uma irmã dela teve câncer (curado) de tiroide – semanas depois esses sintomas diminuíram e me despreocupei. Essa confluência literalmente me tirou o sono e resolvi fazer um certificado digital.
A certificadora que escolhi tem 5 estabelecimentos em Curitiba e fomos ao mais perto do nosso apartamento, numa sobreloja. Na saída, Silvia especulou que a empresa exigiria alguma assinatura, testemunhas, etc – nada disso ocorreu, mas detonou minha ansiedade, cujo grau está logo abaixo de ser um transtorno. O carro foi estacionado numa transversal, entramos no prédio pelo térreo e vimos que o elevador não ia de lá à sobreloja – para tanto, era preciso descer uma rampa longa e íngreme até a garagem. Esperei ao lado da escada – tendo quase um ataque de ansiedade – enquanto Silvia a subia para ver se a equipe da certificadora dava uma solução. Uma funcionária desceu, percorreu todo o térreo, outra de uma imobiliária se solidarizou e ajudou Silvia a subir comigo. A biometria foi fácil. A funcionária perguntou a Silvia “você é o quê dele, irmã ou filha?”, depois tentou remediar a gafe dizendo que tinha visto antes minha data de nascimento e que também pareço jovem, mas não teve jeito – fiquei me sentindo um velho e Silvia, feliz e vingada por todas as vezes que pensaram que sou seu filho
Não sei em que medida o certificado digital é aceito de fato em lugar da assinatura, mas é um passo para reduzir minha dependência.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Não ter coordenação motora para fazer uma assinatura num contrato ou documento é um dos grandes problemas para quem tem paralisia cerebral, gera muitas perdas e situações vexatórias, e só após os 40 anos é que eu soube da “assinatura a rogo” me comunicando com o Bradesco, não pelos advogados que consultei – há um mês, vi que outra solução é um certificado digital. Até fevereiro, o contrato de patrocínio deste blog estava no nome de uma microempresa individual de uma irmã minha devido à tal impossibilidade, embora fosse contornável nesse caso e houvesse outra razão mais forte. Esse outro motivo acabou em 2022 e, em janeiro, resolvi passar o patrocínio para uma MEI minha. Silvia não gostou da ideia temendo que a mudança desse errado e eu perdesse a única renda que tenho, além do trabalho que ela teria.
Antes mesmo de abrir a MEI, procurei um banco digital cujo processo de abertura de conta parecesse menos difícil para mim, escolhendo o Cora SCD. Quem tem paralisia cerebral com ataxia e atetóide não consegue ficar imóvel justamente quando é estritamente necessário, como num reconhecimento facial para abrir uma conta. Foi preciso fazermos dezenas de tentativas para completa-lo, pois o algoritmo requeria que ficasse parado por um ou dois segundos. Ao entrar na conta, o aplicativo exigiu outro reconhecimento para habilitar o tablet, o qual primeiro tentei fazer sozinho, depois com a ajuda de Silvia e fracassamos. No dia seguinte, mandei um email ao Cora, que felizmente já tinha um procedimento adequado a quem não consegue parar – gerar um número válido numa única sessão de atendimento, o cliente anota-lo e tirar foto segurando o papel. Decidi autentificar o contrato com a “assinatura eletrônica” fornecida pelo governo federal, o que exigiu um terceiro reconhecimento facial – haja paciência! –, mas este foi fácil porque o algoritmo deve ter sido desenvolvido já pensando em quem tem tal dificuldade. Por fim, descobri um site gratuito para uma MEI emitir notas fiscais, mas demorei um dia e meio para conseguir acessa-lo porque os primeiros links para ele que vi estavam errados.
Cada um desses problemas foi muito estressante e cansativo para mim, e alguns me fizeram atormentar(!) Silvia. Porém, atingi meu objetivo, reduzi minha dependência, adquiri meios para fazer contratos no meu nome e percebi que ao menos algumas empresas e instituições estão se adaptando a pessoas com pouca coordenação motora.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Quando uso minha prancha de comunicação, um dos expedientes para agilizar a conversa é, se meu interlocutor perceber de início o que pretendo dizer, falar logo para me permitir passar à palavra ou frase seguinte – é um autocompletar humano. Às vezes Silvia usa tal coisa para me sacanear, colocar nos meus pés palavras completamente diferentes das que sabe que quero dizer. Ontem à noite, começamos a conversar sobre o filme Doutor Jivago, que adoramos, ela disse “eu era apaixonada por Omar Sharif”, apontei para mim mesmo, gesto que ela entendeu perfeitamente significar “eu também era apaixonado por Julie Christie” mas, em vez disso, perguntou “você também era apaixonado por Omar Sharif?” e tirou onda que eu era gay
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Há uns dois meses, Silvia entrou no nosso quarto na hora em que eu estava arrumando a cama, disse “é um marido espetacular, um pai espetacular”, inicialmente não compreendi o porquê daquele elogio, pois assumi tal tarefa há algum tempo quando a empregada não vem e é meio insignificante diante do que ela faz nesses dias, até perceber que o motivo é que a grande maioria dos homens se nega a fazer trabalhos domésticos, ainda mais se houver a desculpa de ter uma deficiência física. Depois ela me perguntou se teria a mesma atitude se não tivesse paralisia cerebral, ao que primeiro respondi que sim, pois tem muito mais a ver com o clima ideológico da juventude brasileira nos anos 1980 – que absorvi de algum modo, apesar de meu forte isolamento social – do que com a deficiência, mas em seguida fiquei em dúvida porque a carreira que provavelmente seguiria costuma gerar grande, até extremo conservadorismo. De fato, é conhecido que pessoas de uma categoria que é objeto de discriminação e preconceito tenham o mesmo comportamento em relação a outro grupo que também está nessa situação – para o caso de quem PC veja aqui. Assim, sou cético com a ideia de que ter uma deficiência torna mais improvável que alguém seja machista, racista, homofóbico ou até discrimine quem tenha outro tipo de deficiência.
Na tarde da penúltima terça, estava sozinho quando vi nuvens escuras, mas não fechei logo a vidraça da varanda por causa do calor e na esperança de que não chovesse. Choveu demais e granizo, o que me fez fecha-la com algum esforço. Em seguida, fui verificar as janelas dos quartos e estavam todas abertas. Comecei a fechar uma a uma, quando cheguei ao nosso este estava literalmente alagado, contive o impulso de disparar em direção à janela, senão ia escorregar e cair, e engatinhei lentamente até esta debaixo de chuva grossa, vento forte e granizo. Cheguei a começar a enxugar o chão com um pano, mas então Silvia e as meninas chegaram. Pareceu coisa de cinema catástrofe!
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