Fragmentos do Cotidiano de um Pai
No último domingo, as filhas de Silvia foram para a casa do pai e Clara começou a guardar mais os brinquedos. Junto com experiências anteriores com resultados semelhantes, isso me fez perceber que, quando minha presença se destaca, Clara torna-se mais organizada.
À tarde, enquanto Silvia tentava descansar um pouco no quarto, Clara quis brincar de “casinha” – feita de mesinha, cadeirinha, uma toalha e almofadas – comigo, fazendo de conta que era a “sereia aquática”, personagem do youtuber Luccas Neto, vestindo uma fantasia apropriada e me chamando de “pai sereio”.
Na terça, Silvia a chamou para ir à piscina do nosso condomínio, Clara perguntou algo como “você vai levar meu pai, para ele não ficar triste?” e insistiu por algum tempo. Essa atitude nos surpreendeu, Silvia falou que, pelo jeito, Clara vai querer me levar a todos os lugares, brinquei que até para saltar de paraquedas, me alegrei, mas depois fiquei incomodado com sua preocupação comigo, pois não quero que sinta-se com a “missão” de cuidar de mim.
Fui à piscina no dia seguinte, quando eu estava entrando nesta Clara disse a um vizinho “ele é meu pai Ronaldo”, parecendo já ter consciência da minha mudez, mas também considerando a paralisia cerebral como natural, neutra, e talvez com um tom de orgulho.
O Super Homem de Nietzsche?
Há poucos dias, Silvia e eu vimos esta descrição da ideia de Super Homem de Friedrich Nietzche – não conheço esse filosofo, apenas vejo falarem dele – num vídeo que ela colocou e tanto eu quanto eu percebemos, simultaneamente, que me encaixo no conceito. Foi a primeira vez que pensar ou ouvir que sou um Super Homem não me desagradou.
Noite Horrorosa
No penúltimo sábado à noite, Silvia quis ir à Casa do Papai Noel, uma exposição natalina em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Logo que entramos lá, comecei a temer que minha cadeira de rodas virasse com Clara no meu colo, porque o terreno era cheio de aclives e declives e as junções das lajes tinham muitos desníveis, fazendo as rodas dianteiras se engancharem nestas com frequência – só conseguimos andar pelo parque porque incontáveis pessoas nos ajudaram, como é típico dos curitibanos, embora o atendimento que recebemos dos funcionários da entrada tenha sido péssimo. Fiquei o tempo todo preocupado em segurar firme uma mão na outra em torno de Clara, até nos trechos planos do caminho, nos quais era desnecessário. À medida em que o tempo passava e nada de errado acontecia, me perguntava porque continuava tenso, perturbado – era intuição de pai! Quando já estávamos indo à saída do parque, Silvia se lembrou que faltava pegar a foto que tiramos com o Papai Noel, ao subirmos um aclive mais acentuado ela quis mudar de direção e perdeu o controle da cadeira, que virou de lado – mas a força que ela fez atenuou a queda, a roda lateral e minha espasticidade (rigidez muscular) me impediram de sofrer um impacto no chão e meu rígido braço direito protegeu Clara, de modo que esta só levou um susto e eu, um arranhão superficial na mão. O nervosismo resultante me deu uma forte dor de cabeça.
Silvia gosta de filmes de terror e eu, não. Após chegarmos em casa e Clara ir dormir, concordei em assistirmos um baseado num livro de Stephen King, um escritor que ela também gosta, que era tão escabroso que eu virava a cabeça para não ver algumas cenas e levou ela própria a se sentir mal. Não pude deixar de exclamar “que noite horrorosa!”.
Ensaio de Dança
No próximo sábado, Clara fará uma apresentação de dança pelo colégio, ontem quis ensaiar comigo e o resultado ficou hilário – a música é “Não se Reprima” do Menudo. Ela me associa mesmo à alegria e qualquer atividade lúdica, divertida a faz pensar em mim.
Pilates
Minha fisioterapeuta é eclética e, ontem, quis que eu fizesse pilates ou pelo menos um arremedo disso.
Sentimentos sobre um Vídeo
Silvia resgatou este vídeo de outubro de 2017. Apesar de (ou porque) sempre termos curtido intensamente cada momento com Clara, sentimos muita saudade e vontade de ter outros filhos. E me entristeci ao ver que, naquela época, conseguia pegar e tocar Clara, antes da minha descoordenação motora leva-la a evitar isso.
Declaração de Amor da Filha
Nesta semana, me entristeci algumas vezes pelo distanciamento afetivo de Clara. Ontem à noite, Silvia foi jantar com as colegas de trabalho – só as mulheres – e fiquei cuidando de Clara com a ajuda da nossa diarista. Pouco após as 21h, para Clara dormir propus a ela assistir Malévola no sofá, o que inicialmente não deu certo e deixei a TV num canal aberto para a diarista ver. Minutos depois, esta a convenceu, ao se deitar no sofá Clara me pediu para botar o filme, passou a acariciar minha cabeça, falou em voz baixa “papai, eu adoro você” – foi a primeira vez que ela disse isso espontaneamente – e logo dormiu
Enquanto Clara me acariciava, tentei fazer o mesmo na sua perna, mas ela rejeitou e, com um pouco de tristeza, fiquei pensando se algum dia vai superar o medo do meu toque.
Estranha Simpatia
Crianças de até 2 ou 3 anos sempre simpatizaram comigo, sorriam para mim, não sei porquê. Neste ano, duas amigas das filhas de Silvia que moram no nosso condomínio, que têm 7 anos, passaram a me abraçar, do nada – nesse caso, intuo que tenha algo a ver com eu ser pai, mas não sei como.
Alegrias de Pai
Ontem de manhã, enquanto comíamos Clara ficou, rindo muito, me falando de brincadeira “mamãe é uma baratinha(ou minhoquinha), né?”, o que me fez pensar em como é bom ver uma filha espelhar, herdar características nossas que são boas – nesse caso, alegria, bom humor e facilidade de rir.
Clara continua gostando de ficar no meu colo quando estou na cadeira de rodas, mas, com seu crescimento, é um peso cada vez maior para Silvia conduzir – algo que deve ser evitado até esta retirar a hérnia que tem no abdome – e às vezes fica me machucando. Uma solução é colocar nela uma coleira infantil segurada por Silvia; outra, se esquecermos da coleira, é Clara segurar minha mão. Tentei a segunda solução algumas vezes, sem sucesso porque a descoordenação motora me fazia machucar sua mão, até que, ontem à tarde, o consegui num shopping center – fiquei todo faceiro ao andar (de cadeira de rodas) de mãos dadas com minha filha pela primeira vez. Num elevador desse shopping center, Clara mostrou a foto que tiramos com o Papai Noel de lá, mostrando os pais sem dá a mínima para minha deficiência.
À noite, após ver Silvia me beijando sentada no meu colo, Clara veio me beija e acariciar.