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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara é carinhosa, zela pelos pais, preocupa-se conosco, gosta de nos ajudar – é uma menina boa. Porém, nas brincadeiras gosta de ser personagens maus, uma vez Silvia perguntou qual tema ela queria para uma festa de aniversário e sua resposta foi ‘todas as vilãs”. Silvia se assusta com isso – não compreendo o motivo, já que Clara tem bondade –, enquanto me diverte, até porque ela me espelha nesse aspecto. Gostamos de (fingir) ser uma dupla do mal😀
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Na segunda, uma irmã quis que eu ajudasse a convencer meu pai a se isolar mais por causa da COVID-19 e me repassou um áudio do meu irmão que dizia que nossa irmã que tem deficiência estava gripada, o que me fez pensar na hipótese de ser a COVID-19 e não adiantou muito ele dizer, mais tarde, que poderia ser só uma alergia. Essa irmã tem deficiência cognitiva severa, frequentes doenças respiratórias, pouquíssima capacidade de comunicação, não consegue informar o que sente e geralmente troca vírus com meus pais, que têm mais de 80 anos e saúde frágil. Em Recife, o sistema de saúde já está quase em colapso, tive medo que esses três morressem e passei o resto daquele dia me sentindo fisicamente mal. Só na quarta é que me tranquilizei, ao fazer uma chamada de vídeo com minha família e ver que todos estavam bem.
Venho tomando vinho após o jantar e, na quinta, ao faze-lo percebi que é um luxo, principalmente numa pandemia, com tanta gente sofrendo e morrendo. Isso fez me tocar do quanto minha situação é privilegiada, inclusive por morar num estado e numa cidade que, ao menos por enquanto, estão controlando bem a COVID-19; e se ainda vivesse em Recife, a essa altura meus nervos estariam à flor da pele mesmo se meus familiares continuassem com saúde.
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Na segunda após o jantar, ao ver Silvia e eu nos acariciando Clara perguntou algo como "o que vocês estão fazendo? Estão namorando? " e Silvia respondeu "papai é meu namorado". Isso deixou Clara toda amuada, triste, querendo chorar e pensei que está na fase do Complexo de Electra em que a menina deseja a mãe. Silvia se desdisse, Clara me perguntou "papai, você é meu namorado?" e, quando respondi que sim, fez a maior festa. No início do ano, já percebia que ela tinha entrado nesse complexo, mas fiquei desconcertado por ter se tornado tão explicito. Silvia quis que eu conversasse com uma das minhas amigas psicólogas a esse respeito, mas nenhuma deu muita importância, tampouco me preocupa – o problema seria se Clara estivesse dizendo que a mãe é sua namorada – e, ao contrário, para mim é sinal de que seu desenvolvimento psicológico está indo bem. Esperava ver Clara namorando só daqui a uns dez anos, mas acabei sendo seu primeiro “namorado” e virei meu próprio “sogro”
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Na semana passada, um homem de Belém-PA que tem uma paralisia cerebral mais leve que a minha me procurou pelo Facebook pedindo ajuda para conseguir aceitar a própria deficiência e fiquei sem saber o que dizer – em geral, não sei como responder quando me colocam essas questões existenciais. Fui um menino chorão e tinha muita revolta contra minha condição. Acho que me cansei de chorar na adolescência, além do hábito da leitura desviar meu foco para outros assuntos, embora tenha continuado bastante negativo. Curiosamente, não lembro de tratar explicitamente da aceitação na psicoterapia que fiz nos anos 1990, a qual girou em torno da minha sexualidade, raiva das mulheres e problemas familiares. Creio que a aceitação chegou mais diretamente em consequência de ter conseguido trabalhar, feito um site que ficou conhecido nacionalmente, atraía mulheres, trouxe respeito na família e me permitiu namorar – indiretamente a psicoterapia influiu nisso tudo. Quem me conheceu após os 40 ou 45 anos deve me achar um exemplo a esse respeito.
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No fim do Século XX, quando meu site dava muita mídia, diante do meu bom humor e riso aberto uma repórter de um jornal de Recife me perguntou se era feliz. Não soube responder, pois achava até o próprio conceito de felicidade vago, indefinível e nunca a tive como objetivo – buscava coisas mais palpáveis. Depois é que li alguns artigos plausíveis sobre felicidade. Uma das lições que aprendi desses textos é que um erro defini-la como posse de objetos, pois, quando se consegue eles, passa-se a desejar outros, embora um mínimo de bem-estar material seja necessário. Hoje, para mim é nítido que não soube responder àquela pergunta porque não era feliz e que me tornei nos últimos quatro anos que vivi lá, quando fiz novas amizades, passei a ter uma renda estável e que me permitiu ter sexo com regularidade, mas sempre me queixava a meus amigos da falta de uma namorada, do amor de uma mulher. Ao (re)encontrar Silvia minha felicidade se completou e duplicou com Clara.
Às vezes fico aterrorizado com a pandemia de CONVID-19 e pelo Brasil ter um presidente nazista, que acha esta uma ótima oportunidade de se livrar de idosos, doentes, pessoas com deficiência e outros indesejáveis – sem o isolamento social, a economia terá uma contração pior. Apesar disso, nos últimos dias tenho me sentido feliz – obviamente, um dos motivos é ter os recursos e privilégios da classe média. Mas também assim é porque, ao menos desde os 20 ou 30 anos, sempre soube o que é importante para mim, meus desejos não mudaram após serem realizados e não eram excessivamente de objetos.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ontem à noite, ao escovar meus dentes Silvia deu um beijo na minha face, sorri e involuntariamente fechei os olhos curtindo esse gesto de amor, o que gerou uma longa série de recordações. A primeira foi que, em torno de 1999, estava apaixonado por uma psicóloga, vice-versa, chegamos a viajar juntos, mas nada houve entre nós, situação que fez uma amiga surda me perguntar pelo velho ICQ “nunca beijou a boca de uma mulher que você ama?” e, para espanto dessa amiga, total constrangimento meu e talvez vergonha, tive de responder “não” – então já tinha 35 anos. Na época e ainda por muito tempo, transava com prostitutas, que têm por regra não beijar a boca dos clientes e, se alguma a quebrou comigo, não lembro – tal ausência de lembrança indica que, se aconteceu, isso não teve nenhum significado afetivo para mim.
Um ou dois anos depois, comecei a namorar, mas não consegui amar as primeiras três mulheres com quem o fiz. Só em 2004 é que poderia responder “sim” àquela pergunta, porém o fim desse quarto relacionamento foi tão difícil para mim que, quando o recordo, preciso me esforçar para não considera-lo algo negativo – na verdade, foi muito bom. Por razões diferentes, o mesmo pode ser dito do namoro seguinte, o último antes de conhecer Silvia.
É por esse histórico que continuo me deleitando com os beijos da minha linda e maravilhosa esposa.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
O isolamento social devido à pandemia do SARS-Cov-2 visa tanto evitar a saturação do sistema de saúde quanto reduzir o contágio na população, mas, quando acabar, o vírus continuará circulando e algumas pessoas, adoecendo. Não estamos deixando as meninas descerem para as ótimas áreas comuns do nosso condomínio nem as filhas de Silvia irem para a casa do pai, mas ela continua precisando sair para fazer compras, além de haver alguns outros fatores de risco. Posso passar meses confinado ao apartamento, mas um dia isso vai abalar meu equilíbrio psicológico e terei de sair, embora pretenda faze-lo só no momento em que dispor de uma máscara apropriada. Por tais motivos, tenho certeza que terei a COVID-19. Se for um caso grave e durante a saturação do sistema, o código de ética médica diz que eu seja preterido em favor de alguém mais jovem, sem deficiência e anteriormente saudável – numa situação de desespero, nunca um médico vai acreditar que levo uma vida boa e feliz, melhor que a de muita gente sem deficiência.
Digitei o paragrafo acima friamente, sem medo algum. Clara não tem apneia há uma semana, o que me tranquiliza, embora fique sobressaltado com qualquer tosse ou espirro desta. Há três dias tentei pensar no que fazer se Silvia adoecer e fiquei tão aterrorizado que não consegui, tratei de botar outra coisa na cabeça.
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O isolamento social é um elemento quase inevitável da vida de quem tem paralisia cerebral e a pandemia de COVID-19 só o acentuou um pouco. Já que minha fisioterapeuta parou de atender, venho procurado ter a disciplina de me exercitar a cada dois dias para aumentar minha chance de sobrevivência – que hoje imagino ser de 90% –, embora não consiga fazer todos os exercícios sozinho. Meses depois de nos casarmos, Silvia começou a trabalhar em home office, portanto ela continua precisando desempenhar suas atividades profissionais normalmente. Tem sido um desafio combinar isso com limpar o apartamento, cuidar das meninas, mantê-las entretidas, cozinhar, etc, ainda mais porque dispensamos (remuneradamente) nossa empregada e a diarista – mais uma vez, ela tem mostrado ser uma mulher incrível. Quem vem a ajudando muito é sua segunda filha, enquanto pouco ou nada tenho conseguido colaborar, estou sendo quase totalmente inútil. De qualquer forma, continuamos bem de saúde.
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Meus sogros moravam em Brasília há quase 15 anos, apesar de Silvia ter comprado o apartamento em que moramos originalmente para voltarem a Curitiba. Silvia passou o segundo semestre de 2019 se desentendo com uma pessoa de quem depende, imaginando que, se fossemos morar lá, teria uma grande ajuda da mãe e da irmã que não poderia ocorrer, pois seus pais já estão bem senis e esta estava sobrecarregada por cuidar sozinha deles, além de Brasília ser menos estruturada – p. ex, lá o Judiciário é muito menos informatizado, o que a obrigaria a sair para trabalhar com frequência, algo que raramente faz aqui. Esses e outros problemas deveriam ser óbvios para Silvia, assim como a conclusão de que tal mudança seria desastrosa, os quais não enxergava por ter uma grande carência da mãe e passei o período tendo de esmiunçar a realidade – uma vez Silvia até descontou a raiva daquela pessoa em mim por essa causa! No fim do ano, senti aperto no perto e outros sintomas de estresse alto, demorei para compreender porquê e creio que o motivo foi que ter ficado seis meses impedindo Silvia de tomar decisões insensatas, por raiva e carência, me fez sentir que as coisas dependem mais de mim do que eu supunha.
Naquele período, insisti com Silvia que era o momento de ajudar sua família em vez de esperar auxílio desta. De fato, acabaram decidindo voltar para Curitiba, embora minha influência nessa decisão tenha sido pouca ou nula. Minha cunhada quis me encarregar das finanças da mãe, não gostei nada da ideia e Silvia a convenceu a me responsabilizar apenas pela metade do dinheiro disponível. Devido à carência citada acima, ela se negou a enxergar a progressão da senilidade da mãe e queria que esta assumisse alguns cuidados com Clara, o que tive praticamente de proibir – mas minha sogra tem consciência de que pouco pode fazer pela neta. Tiveram muita dificuldade em organizar o novo apartamento e, apesar de eu ter dado alguma ajuda, Silvia ficou bastante cansada, ressuscitando meu medo de ela sofrer uma estafa. Essa situação me fez ter, no fim de fevereiro, um verdadeiro ataque de ansiedade, com desfalecimento e alteração do ritmo cardíaco numa ocasião em que não havia motivo imediato para tanto.
Desde o fim de 2019, sabemos que Clara tem hipertrofia de adenoide com indicação de cirurgia, a qual relutamos em fazer. No dia da chegada da família de Silvia, tal problema combinou-se com uma laringite para levar Clara a ter apneia durante o sono, o que foi assustador – a laringite foi curada, mas sua respiração não está totalmente boa. Quando a pandemia de COVID-19 se configurou, eu quis fazer logo a cirurgia, Silvia não e acabei concordando com ela porque, se ainda fosse possível, seria num momento em que o vírus estaria amplamente disseminado. Assim, estou com medo que Clara adoeça gravemente. Devido às dificuldades respiratórias causadas pela paralisia cerebral, estou no grupo de risco, acho que tenho uma chance de 8 a 12% de morrer e o dobro de ser um caso grave, mas não ligo para isso, só me preocupando com meus familiares vulneráveis. Esta pandemia, com todas suas consequências, tem me feito ficar com aperto no peito quase permanentemente, que só passa com o carinho de Silvia.
Acho que tenho uma tendência a desenvolver um transtorno de ansiedade.