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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
No primeiro semestre, minha mãe sofreu uma queda em que fraturou o fêmur pela segunda vez e passou alguns meses sem andar, o que me afligiu e fui com Silvia e Clara a Recife no início de novembro, já que fazia três anos que não via minha família, passando por quatro aeroportos diferentes.
Por lei, as companhias aéreas são obrigadas a disponibilizar um funcionário para ajudar o embarque e desembarque de pessoas com deficiência. O que fez tal função no aeroporto de Brasília era meio grosso, Silvia demorou um pouco para ajeitar Clara e a bagagem no avião que nos levaria a Recife, causando um engarrafamento no túnel de embarque, por três vezes ele se referiu a ela como “a mãe dele” falando aos outros passageiros e eu pensava “mãe é o diabo que te carregue”; irritado, cogitei levantar a mão na esperança de que ele visse minha aliança, mas não o fiz pela baixa probabilidade de sucesso – já estou desenvolvendo uma impressão ruim dos brasilienses, pois na penúltima vez que passei por aquele aeroporto o tratamento que nos deram também não foi bom. Na volta por Guarulhos, vendo Clara no meu colo o funcionário que auxiliou nossa saída da aeronave perguntou a Silvia “são irmãos?” e, para seu embaraço, ela respondeu “não, pai e filha”; no embarque para Curitiba, a funcionária responsável se referiu a ela como “a esposa dele” e a sensação que tive pode ser expressa como “até que enfim, alguém inteligente” – será por que era uma mulher? Não ouvi asneira alguma nos aeroportos de Recife e Curitiba.
Após tal viagem, algumas vezes encontrei com pessoas da minha faixa etária e, numa dessas ocasiões, senti um grande estranhamento porque ainda pareço ter 20 anos a menos. Mas Silvia não é menos jovial, além de muito bonita e, se não fosse o raciocínio implícito “se precisa de cuidado é criança”, na pior das hipóteses achariam que temos a mesma idade.
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Uma vez vi uma amiga da minha família de origem falar com admiração a alguém que meu pai tinha tanta autoridade com os filhos que, às vezes, bastava olhar para um para este parar, pensar no que estava errado e se corrigir. Por outro lado, ele e os irmãos tinham grande dificuldade em expressar emoções e sentimentos e compreender os dos outros e passei a vida ouvindo parentes se queixarem a respeito, embora fossem pais exemplares, capazes de fazer os maiores sacrifícios pelos filhos. Imaginava que ambas as características eram as duas faces da mesma moeda, quando Clara nasceu decidi que não seria um pai afetivamente distante ainda que isso tirasse minha autoridade, a qual, de qualquer forma, supostamente não existiria devido à dependência econômica e física. Errei redondamente: ontem à tarde, ao descer da minha cadeira adaptada fiquei olhando em silêncio Clara desembrulhar um chocolate no sofá e, quando percebeu que estava observada por mim, ela disse “vou jogar no lixo, papai” – se fosse outra pessoa que estivesse a vendo, com certeza ela teria deixado a embalagem ali e sujado o sofá.
Inversamente, horas depois ela conversou com uma amiga que mudou-se para São Paulo, de repente perigosamente começou a dançar de pé na beira do sofá, falei um arremedo de “Clarinha” num tom mais alto – não consigo pronunciar nada parecido com “Clara” –, o que chamou a atenção de Silvia e esta explicou a ela que estava correndo risco de dar uma queda feia.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Faz tempo que o acesso à Internet é tão essencial quanto o fornecimento de energia, água, etc, e Silvia trabalha em home office desde que engravidou, anos antes da pandemia. Na penúltima terça, a fibra ótica que faz nossa conexão foi cortada e o provedor deu um prazo mínimo de 40 horas para consertar – para complicar, a rede móvel da nossa operadora de celular é péssima onde moramos. Obviamente, os transtornos foram se acumulando, o maior foi Silvia ter de ir trabalhar no apartamento da mãe usando um notebook lento. Dois dias depois, ela saiu levando a primeira filha consigo, a segunda para o colégio e fiquei sozinho com Clara. Antes da empregada chegar o interfone tocou, percebi que era o técnico que veio fazer o conserto, me vi diante da perspectiva de ele ir embora e ficarmos sem Internet não sei mais quanto tempo – dá para adivinhar o palavrão que pensei Calmamente, enviei mensagens para o WhatsApp da portaria, vi que estas não estavam indo, alterei a configuração do tablet e consegui autorizar a entrada do técnico – em seguida, a empregada chegou e o atendeu. Foi sorte não ter ficado nervoso, o que acentuaria a espasticidade e me impossibilitaria de resolver a situação, mas também houve uma dose de prevenção pois, antes de Silvia sair, pedi para botar meu óculos e mantive o tablet ao alcance do meu pé – ficar sozinho com Clara sempre liga meu alerta.
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Clara se deitar no meu colo tornou-se rotineiro, ainda assim em duas das três vezes que isso ocorreu nos últimos dias Silvia parou para nos fotografar e, quando essa foto foi tirada, estava saindo apressada. O inusitado dessa foto é só existir, a situação ainda se destacar aos olhos de Silvia. Talvez ela ainda tenha fascínio por minha paternidade – objetivamente é raríssimo um homem com paralisia cerebral severa ser pai –, o modo como amo Clara, me empenho em cuidar desta, etc. Do mesmo jeito, ninguém mais que Silvia sabe o quanto foi difícil, complicado para mim aceitar tal condição, até considerar Clara a melhor coisas que me aconteceu. Ao ver nossa filha deitada no meu colo, Silvia falou “mas que folga!”, ao que Clara respondeu “é que gosto do papai”.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Estou casado com Silvia há 7 anos e contínuo a achando linda. Por outro lado, há um ou dois meses à noite, num momento eu estava bem relaxado sobre uma coberta branca ela falou algo como “você está parecendo um garoto-propaganda”, o que inicialmente não entendi direito até ela querer tirar uma foto, ato que afetou meu relaxamento, mesmo assim ela gostou da foto, mas não vi a menor graça, beleza nesta, tanto que não pedi para me enviar. Aparência física ainda é um assunto complicado para mim.
Sábado passado à noite, enquanto assistíamos TV na cama Clara se deitou sobre as pernas de Silvia para dormir, comecei a acariciar a mão dela presumindo que isso não demoraria, fiquei numa postura em que meu corpo se contorcia, tentei retirar minha mão várias vezes, mas em todas Clara exigia que continuasse sobre a dela. Foi um episódio aparentemente insignificante, mas que mostra que Clara faz questão do meu carinho apesar dos pequenos acidentes causados pela descoordenação motora.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Passei boa parte da vida ouvindo minha mãe reclamar que meu pai só dava de presente coisas para cozinha – a qual aquela odiava – e ele demorou décadas para se sensibilizar a esse respeito. Muito antes de conhecer Silvia, aquilo me fez resolver que nunca presentearia uma namorada, esposa, qualquer mulher que fosse com um utensílio de cozinha. Nesta semana foi seu aniversário, ela cismou de querer uma frigideira de aço inox de presente, fiquei me enrolando, relutando, e comprei apenas quando ela própria ia faze-lo. Em seguida, ela começou a tirar onda de que sou machista, que botaria uma foto da frigideira no Instagram, etc – apesar de saber que era brincadeira, não consegui levar na esportiva. Silvia adora me sacanear 😀😛
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Por mais descoordenação motora que alguém com paralisia cerebral tenha, há atos que é melhor fazer por si próprio do que com ajuda dos outros. Um exemplo é subir numa rede, algo muito comum no Nordeste: quando o faço sozinho não tem risco algum, mas se outra pessoa ajuda há o perigo de eu cair para trás e bater a cabeça no chão. E se recusar o auxílio, fico parecendo chato, orgulhoso em excesso, etc.
Uma extensão disso é fazer em meu lugar tarefas para as quais tenho coordenação suficiente para assumir com facilidade. De vez em quando Silvia tem tal atitude, porque me ver as desempenhando fere seu complexo de Mulher Maravilha, ou toma como uma crítica implícita ou só para me provocar. Nunca me queixei a esse respeito mas, semanas atrás, quando eu estava guardando bonecos de pano ou pelúcia das meninas ela se adiantou, terminou de faze-lo, me irritei – embora mais porque a situação de fundo já era tensa – e reclamei.
É cada vez mais frequente Silvia pedir, falar, ordenar algo às meninas e estas só atenderem, obedecerem se o faço – ora isso me irrita porque é um desrespeito à mãe, ora me desconcerta tanto que rio. A própria Silvia, quando a empregada avisa que a comida está pronta, às vezes só se levanta para almoçar quando a chamo. Essa questão de ser autoridade na família é um tema recorrente deste blog porque, dada minha dependência física e econômica, dava como certo que não a teria. E tal papel ainda vai contra minha natureza, muitas vezes fico enrolando, me furtando a exerce-lo.
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Curitiba é a capital estadual mais fria do Brasil, no inverno quem não pode calçar um sapato usa meia para aquecer os pés e, para isso não me impedir de utilizar o tablet, a corto no dedão. Quando desço para fazer fisioterapia e encontro vizinhos, fico escondendo o pé direito para não pensarem que estou com uma meia “furada” – mas ela está nesse vídeo 😉
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Uma das situações mais chatas, constrangedoras para quem tem deficiência é brigar, ficar com raiva, não querer nem ver a pessoa que está no papel de cuidador e precisar que esta o alimente, vista, etc; não estou brigado com Silvia, mas eventualmente isso acontece, assim como ocorria com meus pais, irmãos, amigos, empregadas que cuidavam de mim em Recife. Reciprocamente, cuidar de alguém de quem se está com raiva é bem difícil – ninguém torna-se santo ou vítima só por ter uma deficiência.
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Perdi minha principal fonte de renda em maio. Como tentativa de compensar tal perda, há um mês criei uma chave Pix –
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