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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Uma semana e meia antes do Dia dos Pais, Silvia mandou Clara me perguntar o que queria de presente, falei algo como “ibo” achando que ela não compreenderia que pretendia dizer “livro”, pois nunca tinha tentado pronunciar esta palavra para Clara mas, para minha surpresa, entendeu perfeitamente. Horas depois comentei isso com Silvia, que respondeu “claro, ela passou a vida toda com você”.
Ultimamente, de vez em quando Clara pega uma caneta e papel para fazer operações de adição, lúdica e espontaneamente. Seu colégio conseguiu a raridade de fazer uma criança de 6 anos gostar de matemática – e/ou ela herdou tal gosto de mim Seja como for, tenho orgulho desse comportamento.
Na penúltima semana houve um dia em que, por causa do trabalho, Silvia ficou sem tempo de aprontar as meninas para irem ao colégio e, pela primeira vez, Clara o fez sozinha. No dia seguinte, depois de dar o uniforme da irmã de 11 anos – o que achei fantástico –, Clara estava para se vestir sozinha novamente quando Silvia chegou ao quarto e o fez por ela. Esse episódio poderia ficar sem ser notado entre a miríade do cotidiano, mas me deixou inconformado e, horas depois, enviei uma mensagem pelo WhatsApp pedindo para Silvia permitir, estimular a independência de Clara. Depois lembrei das milhares de vezes que meu pai disse algo semelhante à minha mãe a meu respeito: a curto prazo, o que ele falava pareceu cair no vazio mas, em décadas, seus conselhos penetraram profundamente em mim, embora eu ache que esta não goste muito do resultado Espero ter o mesmo sucesso com Clara. Meu empenho em desenvolver sua independência sendo eu mesmo física e economicamente dependente faz me sentir numa situação paradoxal.
Na última quinta à tarde, fui a uma aula aberta de educação física na escola de Clara comemorativa ao Dia dos Pais. Como sempre, minha presença a tornou a criança mais alegre da ocasião, eufórica e exibida. Vi Silvia dizer, com ciúme, a outra mãe que Clara não fica assim nos eventos do Dia das Mães e outras ocasiões em que não vou lá. Pensei que Silvia estivesse brincando, pois Clara é bem mais ligada a esta, mas depois reafirmou o que disse. Talvez seja por ser raro eu ir lá ou porque Clara tenha muito orgulho de mim – mas não tenho boa explicação para essa diferença.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Desde a infância, Silvia sonhava em ir a uma Bienal do Livro e resolvemos que seria a deste ano em São Paulo deixando, embora com medo e preocupação, as meninas com nossa empregada – no fim, os problemas com estas foram poucos e pequenos. Essa bienal teve bem menos palestras, lançamentos de livros, presença de escritores, etc, do que esperávamos e estavam concentrados no fim de semana, enquanto estivemos em São Paulo entre terça e sexta. Assim, após uma tarde e uma manhã na Bienal perdemos o interesse e decidimos ir a outros lugares – MASP, Pinacoteca, Av. Paulista (na qual eu quis em andar para sentir o pulso da cidade), Livraria Cultura e o Bairro da Liberdade.
Desde que percebi que o Brasil é heterogêneo em acessibilidade e no trato de pessoas com deficiência, sempre que chego a uma cidade que não conheço fico observando a proporção das ruas com rampa de acesso e piso de guia para cegos e o modo como os habitantes me tratam e falam comigo. Para minha surpresa, a maioria das ruas paulistanas é acessível, com a vantagem das calçadas serem relativamente lisas, enquanto boa parte das de Curitiba é revestida com pedras que geram muita fricção e até emperram as rodas dianteiras de uma cadeira. Por outro lado, assim que entrei na Bienal percebi que os paulistanos são muito solidários e respeitosos com quem tem deficiência – inicialmente Silvia discordou disso mas, horas depois, mudou de ideia quando uma atendente de lanchonete levou a comida até a nossa mesa em vez de seguir o procedimento padrão de deixa-la no balcão; no Bairro da Liberdade me espantei com a frequência da pergunta “quer ajuda?”. O único momento difícil foi quando Silvia sofreu para empurrar acima minha cadeira numa rua bastante inclinada – a sorte foi ela estar fazendo ginástica! Mas não moraríamos lá.
Aproveitei tal viagem para conhecer pessoalmente uma amiga virtual que tenho há 24 anos, com quem perdi contato várias vezes e que foi moderadora da Lista Vital, o primeiro grupo de discussão sobre deficiência do Brasil, na qual Silvia e eu nos conhecemos. Foi uma alegria, assim como ter passado três dias sozinho com minha linda e maravilhosa esposa, com quem estou fazendo 7 anos de casamento.
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Nesta manhã, quis levar Clara à sessão de fisioterapia para ela não pressionar pelo seu tablet – cujo uso passamos a limitar –, tirá-la de casa e porque eu e a profissional que me atende gostamos mesmo disso. Ao entrar no elevador, lembrei ironicamente que, há dez anos, mal suportava estar com uma criança, e hoje faço questão de ficar com minha filha.
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Para quem tem paralisia cerebral com espasticidade e ataxia, é difícil dissociar os movimentos de uma parte do corpo dos de outra ou imobilizar uma se necessário. Por essa causa, quando saio a máscara fica saindo da posição correta, precisando pedir constantemente a quem está comigo para ajeitá-la e, nesses anos de pandemia, pensava que, se fosse a locais fechados e lotados (aviões, shows, teatros, etc), deveria usar um protetor de rosto (face sheet) por cima daquela. No dia 21, fomos ao show de Lulu Santos no Teatro Guaíra, embora ciente que os casos de COVID-19 estavam aumentando não providenciei tal protetor, me limitando a usar duas máscaras cirúrgicas, as quais, após a música começar, saíram do rosto duas vezes em poucos minutos, o que me fez achar que era inútil usá-las e as retirei – também poderia ter resolvido ver o show passivamente para mantê-las no lugar. Peguei COVID-19.
Na última segunda, tive uma leve inflamação na garganta e febre alta. No dia seguinte, acordei com um início de gastrite e horas depois Silvia disse que meu rosto estava amarelo, o que me fez tomar providências no interesse de Clara para o caso de eu morrer; à tarde, consultei um médico, que disse que os últimos sintomas eram efeitos colaterais do ibuprofeno que tinha tomado como antitérmico. E foi só, fiquei mal apenas por 36 horas, a doença foi leve em mim e Silvia tem alardeado que minha saúde é ótima – não sei se é este o caso. Porém, contagiei Clara e Silvia, fiz as meninas ficarem duas semanas sem colégio, esta acumulou o trabalho doméstico – pois a empregada não está vindo – com o profissional, perdermos uma viagem a São Paulo, etc. Foi a maior estupidez (para não usar um palavrão) que fiz nos últimos anos
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Para converter texto em voz, o Livox usa um tipo de aplicativo chamado “motor de voz” e o que utilizo é o único em português que tem uma voz masculina. No fim de abril, houve uma atualização do Livox que o tornou incompatível com meu motor de voz, me obrigou a usar outro que só tem voz feminina e, após Silvia e nossa empregada a ouvirem, falei às duas “virei uma bicha louca” Relatei o problema ao seu desenvolvedor, que é meu amigo, e duas semanas ele lançou uma nova atualização que resolveu tal incompatibilidade, embora a voz masculina tenha ficado meio trêmula e mais grave – Silvia disse que tornou-se sensual. Então falei a elas “voltei a ser heterossexual”
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Na manhã desta terça, enquanto Silvia levava sua filha mais velha para uma aula de reforço, me sentei no sofá, botei uma almofada no colo e automaticamente Clara se deitou neste, mostrando que já se habituou a faze-lo, o que me alegrou muito (a foto não é dessa ocasião). É uma trivialidade para a grande maioria dos pais, mas para um que tem paralisia cerebral nível 3 foi difícil, complicado – nesses anos, me frustrava, entristecia não conseguir. Ao conversar a esse respeito com Silvia, ela disse que Clara se deita mais no meu colo do que no dela – o que não é verdade – e que isso só vai durar até ela levar um tapão meu; parafraseando um conhecido ditado, ciúme mata😀
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Na penúltima segunda, Silvia recebeu uma avaliação do colégio sobre Clara. A alfabetização está um pouco mais rápida que a média e – o que temos dificuldade de perceber – tem muito talento pra artes. Fala de mim frequentemente, com muito carinho e parece estar transmitindo aos colegas a naturalidade com que vê (há pouco tempo nem via) minha deficiência - isso me deu alguma esperança de que não sofra bullying por essa causa ou que tenha capacidade de enfrentá-lo. É muito alegre e carinhosa, características que fizeram a professora que deu a avaliação falar que Clara faz jus ao seu nome - é uma luz. Foi bom saber que estamos a educando bem.
Dois dias depois, o colégio ia promover um evento com os pais em comemoração à Páscoa bem na hora em que a primeira filha de Silvia chega da sua escola e eu ir implicava não haver alguém em casa para recebe-la. A solução que encontrei foi pedir a um amigo da família que viesse para cá para faze-lo. Na noite anterior, Silvia dormiu mal, ficou com enxaqueca e perguntei várias vezes se queria ir sozinha, mas esta resolveu me levar mesmo. Ao nos ver lá, Clara ficou eufórica, logo subiu no meu colo e foi difícil querer sair dele para fazer as atividades. Nesse horário – em torno das 18h – tornou-se difícil eu ir a esses eventos e ainda não sei como resolver isso, mas minha presença é realmente muito importante para Clara.
Silvia notou a ironia de eu nunca ter ido a um colégio e agora estar o fazendo como pai.
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Na última quinta, no colégio de Clara botaram uma sombra com glitter nos seus olhos que causou uma alergia e, na manhã seguinte, ficaram inchados – ela já tinha sido maquiada inúmeras vezes e foi a primeira que teve problema. Pensamos que não era grave, a mandamos à escola mas, no fim da tarde, a coordenadora ligou para Silvia dizendo que Clara queria voltar para casa antes do horário normal porque estava com algum mal-estar. Após Silvia sair para buscar sua segunda filha, botei uma almofada no meu colo na qual fiz Clara se deitar e dormir – fico derretido quando isso acontece. Na hora em que Silvia chegou, pedi para coloca-la na cama para eu poder jantar e Clara insistiu em continuar no meu colo, embora logo depois tenha se despertado com o movimento da casa. Já de madrugada, Silvia foi ver como Clara estava, se assustou porque as pálpebras incharam tanto que o olho direito não se abria e a levou imediatamente a um hospital, enquanto que, numa reação desproporcional – era mesmo só uma alergia –, pelo nervosismo, preocupação, frustração por não poder acompanha-las, etc, senti um aperto tão forte no peito que temi infartar. No sábado, Silvia me contou que, lá, Clara chorava dizendo “eu quero meu pai, eu quero meu pai...”.
Um dos temas mais recorrentes deste blog era que Clara tinha se afastado muito de mim devido à minha descoordenação motora – na verdade, foram pouquíssimas as ocasiões em que a machuquei, graças ao cuidado que tomo. Dado meu estilo de escrever objetivo e conciso, talvez os posts sobre o assunto não deixassem transparecer a desolação, a profunda tristeza que esse problema me dava, a ponto de pensar que poderia ser permanente. Ainda há uma tensão – que agrava minha descoordenação – nos momentos em que trocamos carinho e que não existia com outras crianças com quem convivi ao longo da vida, talvez porque tive de lidar com ela desde que era recém-nascida, algo que foi meio apavorante para mim. De qualquer forma, em grande parte foi resolvido, seu vínculo comigo tornou-se bem forte.
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Decidi incluir nesse vídeo a filmagem na qual faço errado um exercício porque este blog tem como princípio mostrar não só meus êxitos, mas também meus insucessos, trapalhadas, minha falibilidade e, em última instância, a humanidade de quem tem paralisia cerebral.
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