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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Quase toda noite Clara chama uma ou várias vezes Silvia apenas para cobri-la ou outras coisas desnecessárias, o que deixa esta mal durante o dia seguinte pela privação de sono. Já faz um ou dois anos que tento resolver a situação, usando o Livox para explicar a Clara como isso faz mal à sua mãe, prejudica a saúde desta, etc, e pedindo (inutilmente) para Silvia brigar com nossa filha no momento em que o problema ocorre (meu lento tempo de reação me impede de faze-lo), só obtendo um sucesso temporário. Nesta quinta, após passar mais um dia vendo Silvia sofrer pela falta de sono, decidi que se não ia por bem, ia por mal: sabendo que, desde que tinha um ano, Clara fica apavorada com qualquer ameaça à integridade física, à vida dos pais por mais distante que seja, digitei um texto para ser falado no Livox cuja última frase foi “se você não quiser que sua mãe morra logo, pare com isso”, a qual fez Clara se assustar, começar a chorar, ir dizer a Silvia que não queria que esta “virasse estrelinha”, etc. Silvia não gostou do que fiz, mas já faz duas noites que Clara toma todo o cuidado para preservar seu sono, embora seja cedo para saber se houve uma mudança permanente.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Embora Silvia faça muito, muitíssimos mais que eu, há algumas tarefas e atividades que podem ser feitas por nós dois. Entre estas estão compras em farmácias, frutarias e supermercados, sobre as quais vivemos num permanente cabo-de-guerra e até brigamos para assumi-las. Por outro lado, às vezes penso que um dos elementos de sua atração por homens com deficiência é evitar qualquer chance de dominação, de sofrer com o machismo – é só uma especulação. No início do nosso casamento, quando ainda não sabia direito até onde iam minhas limitações e num momento em que estávamos meio brigados – o motivo era a causa mais frequente de dissentimento entre casais (adivinhe...) – Silvia se irritou porque peguei um guardanapo para limpar minha boca – ato trivial até para mim – em vez pedir a ela e, para provoca-la e aumentar sua irritação, respondi “você queria um homem dependente e submisso” No último domingo à noite, ao comentar o filme homônimo Silvia falou “eu brincava de Barbie saindo, indo trabalhar, fazendo todo tipo de coisa enquanto o Ken ficava em casa, fazendo o supermercado ...”, fala que interrompi com uma reação invocada, de indignação, embora também de riso – na hora não me ocorreu nenhuma palavra à mente, mas poderia ser expressa como “então era para isso que você me queria?! Para ser dono de casa? Que sacanagem!😀
Para evitar mal entendido, só estou tirando onda, não há dominação ou submissão alguma no nosso relacionamento e continuarei teimando para assumir as referidas tarefas.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ontem, enquanto estávamos voltando ao apartamento minha fisioterapeuta fez uma série de perguntas a Clara (no meu colo), cujas respostas podem ser resumidas como “vou cuidar de papai e mamãe, vou morar com eles para sempre e não vou me casar”. Fiquei incomodado porque é justamente o que não quero que ela faça, assim como Silvia. Procurei me tranquilizar lembrando que, meses atrás, os planos dela eram casar e ter dois filhos
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara sempre se assustou com qualquer ameaça aos pais. Ela fez sete anos no dia 29 e comemoramos num parque de diversões pequeno e coberto, o qual tem uma sala para cantar os parabéns e os adultos ficarem. Comecei a me entediar, resolvi sair de lá e dar uma volta no parque sozinho – o chão era liso e não tinha obstáculos a que eu movesse a cadeira de rodas com os pés. Clara ainda não está acostumada a que eu ande por aí sem o cuidado de Silvia – exceto para a fisioterapia –, ao me ver preambulando pelo parque sem ninguém praticamente entrou em pânico, contagiou alguns amigos e, juntos, me reconduziram àquela sala – como não podia usar a prancha de comunicação com eles e fazer força talvez os machucasse, não opus resistência; esse processo se repetiu várias vezes até que, na última volta que dei, ela não se importou mais. Passei a maior parte da vida lutando, brigando contra a superproteção da família, especialmente minha mãe, a tal ponto que vir morar em Curitiba foi, entre inúmeros outros motivos, uma forma inconsciente e bem radical de acaba-la, e agora estou enfrentando o mesmo problema com minha filha – é lasca!
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em setembro de 2022, fizemos uma viagem a Foz do Iguaçu que, devido a erros nossos e um bug da companhia aérea, foi cara demais e ruim – basta dizer que as meninas tiveram medo das cataratas e se negaram a ir à passarela, no que ninguém acredita. Frustrados, decidimos voltar lá em junho, a princípio sozinhos, mas logo resolvemos levar a segunda filha de Silvia, a única que nos ajudou, e depois presenteamos com uma passagem outro familiar dela que é uma ótima pessoa a quem somos muito gratos.
Silvia sempre sonhou em me levar ao lado argentino das cataratas – na primeira viagem para lá, em 2015, não podemos ir porque esquecemos meu RG. O único país que efetivamente controla o movimento na Tríplice Fronteira é a Argentina, para entrar nesta há uma fila quilométrica, mas vimos um carro com a etiqueta de pessoa com deficiência a furando, Silvia tinha levado nossa plaqueta equivalente, tratou de tirá-la para entrar na faixa rápida e passamos o dia nas cataratas e em Puerto Iguazu, poupando umas três horas em filas graças à minha paralisia cerebral, o que nos fez ficar tirando onda. Voltamos a este no dia seguinte, entramos numa loja de vinhos na qual simplesmente fiquei encaixotado – teria sido melhor eu esperar no carro –, passei a observar a acessibilidade da cidade e vi que, nas vias principais, é dez, vinte vezes melhor que nas capitais estaduais do Nordeste brasileiro. Em Foz, tive de entrar no banheiro das mulheres e Silvia, no dos homens, porque não havia um separado para pessoas com deficiência, enquanto que, em Puerto, vi um pai e uma filha pequena saindo do banheiro de uma churrasquearia. No Brasil, pessoas com deficiência tem direito a meia entrada e na Argentina, à gratuidade. Nós brasileiros gostamos de zombar da Argentina e suas crises, mas quem tem deficiência vive melhor lá. E no último dia, quando parecia que íamos a um shopping center – que chatice! –, eu e o familiar de Silvia a convencemos a ir ao lado brasileiro das cataratas apesar de estar chovendo.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Dia 18 foi meu aniversário e inicialmente pretendia convidar só uma das minhas fisioterapeutas – que não conteve a ansiedade e acabou se autoconvidando😊 – e quatro amigos nossos, dos quais três são colegas de trabalho de Silvia. Mas fomos ampliando a lista de convidados até que fiquei em silêncio, sinal que ela sabe ser de discordância – não queria uma grande comemoração e tal lista acabou meio arbitrária, com algumas pessoas de quem gostamos ficando de fora e, no dia seguinte, tive de resolver um problema correlato com familiares da própria Silvia. À medida que os convidados chegavam, só me davam (bons) vinhos, cachaças e outras bebidas – a única exceção foi a melhor amiga dela, que me deu uma caixa de chocolate –, o que fez me perguntar “putz, que tipo de imagem eu transmito? A de alcoólatra, cachaceiro, pinguço?” e comecei a me sentir envergonhado, constrangido – só bem depois é que pensei que tal imagem também poderia ser a de alguém alegre, bem humorado, que aprecia a vida, etc. É óbvio que esses presentes motivaram inúmeras piadas e brincadeiras. Foi uma comemoração divertida, alegre, calorosa, como poucas que tive na vida.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em março, Silvia foi a uma reunião do nosso condomínio, que demorou muito, para impedir que a rotina familiar se complicasse e, em particular, que ela ficasse excessivamente cansada decidi botar as meninas para dormir e me surpreendi com a facilidade que tive em contraste com o tumulto que geralmente fazem nesse momento na presença da mãe. Então percebemos que Silvia já pode sair à noite sem precisarmos chamar uma diarista para cuidar das meninas, pois estas já sabem detalhadamente o que precisa ser feito e só tenho que coordenar. Na semana passada, Silvia tinha um jantar com as colegas (só mulheres) de trabalho e foi a oportunidade de testar tal percepção. Não pude deixar de ficar um pouco apreensivo, pois, se houvesse uma emergência, naquela primeira ocasião ela levaria 5 minutos para voltar e nesta, cerca de 30. Porém, foi até mais tranquilo do que na primeira vez. Ainda me é difícil acreditar que a mera masculinidade tenha esse efeito apesar da precariedade da minha condição – isso é o que psicólogos dizem.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ter paralisia cerebral tetraplégica com espasticidade, ataxia e atetóide é ser um acidente em potencial ambulante, sendo sempre possível machucar ou ferir involuntariamente a si e pessoas próximas das formas que, antes de acontecer, são as mais inimagináveis.
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