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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara sempre se assustou com qualquer ameaça aos pais. Ela fez sete anos no dia 29 e comemoramos num parque de diversões pequeno e coberto, o qual tem uma sala para cantar os parabéns e os adultos ficarem. Comecei a me entediar, resolvi sair de lá e dar uma volta no parque sozinho – o chão era liso e não tinha obstáculos a que eu movesse a cadeira de rodas com os pés. Clara ainda não está acostumada a que eu ande por aí sem o cuidado de Silvia – exceto para a fisioterapia –, ao me ver preambulando pelo parque sem ninguém praticamente entrou em pânico, contagiou alguns amigos e, juntos, me reconduziram àquela sala – como não podia usar a prancha de comunicação com eles e fazer força talvez os machucasse, não opus resistência; esse processo se repetiu várias vezes até que, na última volta que dei, ela não se importou mais. Passei a maior parte da vida lutando, brigando contra a superproteção da família, especialmente minha mãe, a tal ponto que vir morar em Curitiba foi, entre inúmeros outros motivos, uma forma inconsciente e bem radical de acaba-la, e agora estou enfrentando o mesmo problema com minha filha – é lasca!
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em setembro de 2022, fizemos uma viagem a Foz do Iguaçu que, devido a erros nossos e um bug da companhia aérea, foi cara demais e ruim – basta dizer que as meninas tiveram medo das cataratas e se negaram a ir à passarela, no que ninguém acredita. Frustrados, decidimos voltar lá em junho, a princípio sozinhos, mas logo resolvemos levar a segunda filha de Silvia, a única que nos ajudou, e depois presenteamos com uma passagem outro familiar dela que é uma ótima pessoa a quem somos muito gratos.
Silvia sempre sonhou em me levar ao lado argentino das cataratas – na primeira viagem para lá, em 2015, não podemos ir porque esquecemos meu RG. O único país que efetivamente controla o movimento na Tríplice Fronteira é a Argentina, para entrar nesta há uma fila quilométrica, mas vimos um carro com a etiqueta de pessoa com deficiência a furando, Silvia tinha levado nossa plaqueta equivalente, tratou de tirá-la para entrar na faixa rápida e passamos o dia nas cataratas e em Puerto Iguazu, poupando umas três horas em filas graças à minha paralisia cerebral, o que nos fez ficar tirando onda. Voltamos a este no dia seguinte, entramos numa loja de vinhos na qual simplesmente fiquei encaixotado – teria sido melhor eu esperar no carro –, passei a observar a acessibilidade da cidade e vi que, nas vias principais, é dez, vinte vezes melhor que nas capitais estaduais do Nordeste brasileiro. Em Foz, tive de entrar no banheiro das mulheres e Silvia, no dos homens, porque não havia um separado para pessoas com deficiência, enquanto que, em Puerto, vi um pai e uma filha pequena saindo do banheiro de uma churrasquearia. No Brasil, pessoas com deficiência tem direito a meia entrada e na Argentina, à gratuidade. Nós brasileiros gostamos de zombar da Argentina e suas crises, mas quem tem deficiência vive melhor lá. E no último dia, quando parecia que íamos a um shopping center – que chatice! –, eu e o familiar de Silvia a convencemos a ir ao lado brasileiro das cataratas apesar de estar chovendo.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Dia 18 foi meu aniversário e inicialmente pretendia convidar só uma das minhas fisioterapeutas – que não conteve a ansiedade e acabou se autoconvidando😊 – e quatro amigos nossos, dos quais três são colegas de trabalho de Silvia. Mas fomos ampliando a lista de convidados até que fiquei em silêncio, sinal que ela sabe ser de discordância – não queria uma grande comemoração e tal lista acabou meio arbitrária, com algumas pessoas de quem gostamos ficando de fora e, no dia seguinte, tive de resolver um problema correlato com familiares da própria Silvia. À medida que os convidados chegavam, só me davam (bons) vinhos, cachaças e outras bebidas – a única exceção foi a melhor amiga dela, que me deu uma caixa de chocolate –, o que fez me perguntar “putz, que tipo de imagem eu transmito? A de alcoólatra, cachaceiro, pinguço?” e comecei a me sentir envergonhado, constrangido – só bem depois é que pensei que tal imagem também poderia ser a de alguém alegre, bem humorado, que aprecia a vida, etc. É óbvio que esses presentes motivaram inúmeras piadas e brincadeiras. Foi uma comemoração divertida, alegre, calorosa, como poucas que tive na vida.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em março, Silvia foi a uma reunião do nosso condomínio, que demorou muito, para impedir que a rotina familiar se complicasse e, em particular, que ela ficasse excessivamente cansada decidi botar as meninas para dormir e me surpreendi com a facilidade que tive em contraste com o tumulto que geralmente fazem nesse momento na presença da mãe. Então percebemos que Silvia já pode sair à noite sem precisarmos chamar uma diarista para cuidar das meninas, pois estas já sabem detalhadamente o que precisa ser feito e só tenho que coordenar. Na semana passada, Silvia tinha um jantar com as colegas (só mulheres) de trabalho e foi a oportunidade de testar tal percepção. Não pude deixar de ficar um pouco apreensivo, pois, se houvesse uma emergência, naquela primeira ocasião ela levaria 5 minutos para voltar e nesta, cerca de 30. Porém, foi até mais tranquilo do que na primeira vez. Ainda me é difícil acreditar que a mera masculinidade tenha esse efeito apesar da precariedade da minha condição – isso é o que psicólogos dizem.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ter paralisia cerebral tetraplégica com espasticidade, ataxia e atetóide é ser um acidente em potencial ambulante, sendo sempre possível machucar ou ferir involuntariamente a si e pessoas próximas das formas que, antes de acontecer, são as mais inimagináveis.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
De vez em quando, alguém com paralisia cerebral angustiado, aflito por não ter relacionamentos amorosos me pede ajuda e fico sem saber o que dizer. Para começar, só tive sucesso com as mulheres de 1999 a 2009 – minha história com Silvia começou em 2000 –, embora uma tenha se apaixonado por mim antes desse período e outra, depois. Isso se dava pela Internet, principalmente porque meu site ganhou alguma fama, e após o foco desta passar para redes sociais tal sucesso acabou. A maioria das que se interessaram por mim o fez espontaneamente, com nenhum ou poucos jogos de sedução da minha parte, nos quais sou péssimo, quase desastrado – ter repelido involuntariamente Silvia naquele ano o exemplifica e posso citar vários outros erros imbecis que cometi. Obviamente isso implica que tenho atrativos fortes o suficiente para funcionarem independentemente das minhas intenções – a própria deficiência física o foi para algumas mulheres –, mas os compreendo só em parte, alguns parecem inatos, outros desenvolvi com propósitos inteiramente diferentes de atrai-las – e eu teria muita dificuldade em ensina-los. Por fim, mesmo na época em que eu nada tinha conquistado que considerasse significativo muitas vezes diziam que era um exemplo, uma lição de vida, prova da existência de Deus, etc, o que me fez adquirir certo anti-heroísmo, uma aversão a fazer generalizações a partir da minha trajetória pessoal – não dou para ser coach! Nas ocasiões em que uma pessoa solicita minha ajuda nessa questão, acabo eu mesmo ficando angustiado, tanto por saber como é sofrido a falta de sexo e amor quanto por ter bem poucos conselhos a dar.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Em fevereiro, um incidente inquietante ressaltou os problemas da não-formalização do meu relacionamento com Silvia, que inclusive estava num limbo legal até 2020, e me fez lembrar do velho fantasma de ter de criar Clara sozinho se algo acontecer a ela – devido à impossibilidade de assinar, demoraria um tempo indefinido para Clara receber pensão e seguros, no qual eu teria de sustenta-la com meus poucos recursos, aceitar que um terceiro fosse seu representante legal, etc. Paralelamente, Silvia começou a ter dores e outras sensações no pescoço e uma irmã dela teve câncer (curado) de tiroide – semanas depois esses sintomas diminuíram e me despreocupei. Essa confluência literalmente me tirou o sono e resolvi fazer um certificado digital.
A certificadora que escolhi tem 5 estabelecimentos em Curitiba e fomos ao mais perto do nosso apartamento, numa sobreloja. Na saída, Silvia especulou que a empresa exigiria alguma assinatura, testemunhas, etc – nada disso ocorreu, mas detonou minha ansiedade, cujo grau está logo abaixo de ser um transtorno. O carro foi estacionado numa transversal, entramos no prédio pelo térreo e vimos que o elevador não ia de lá à sobreloja – para tanto, era preciso descer uma rampa longa e íngreme até a garagem. Esperei ao lado da escada – tendo quase um ataque de ansiedade – enquanto Silvia a subia para ver se a equipe da certificadora dava uma solução. Uma funcionária desceu, percorreu todo o térreo, outra de uma imobiliária se solidarizou e ajudou Silvia a subir comigo. A biometria foi fácil. A funcionária perguntou a Silvia “você é o quê dele, irmã ou filha?”, depois tentou remediar a gafe dizendo que tinha visto antes minha data de nascimento e que também pareço jovem, mas não teve jeito – fiquei me sentindo um velho e Silvia, feliz e vingada por todas as vezes que pensaram que sou seu filho
Não sei em que medida o certificado digital é aceito de fato em lugar da assinatura, mas é um passo para reduzir minha dependência.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Não ter coordenação motora para fazer uma assinatura num contrato ou documento é um dos grandes problemas para quem tem paralisia cerebral, gera muitas perdas e situações vexatórias, e só após os 40 anos é que eu soube da “assinatura a rogo” me comunicando com o Bradesco, não pelos advogados que consultei – há um mês, vi que outra solução é um certificado digital. Até fevereiro, o contrato de patrocínio deste blog estava no nome de uma microempresa individual de uma irmã minha devido à tal impossibilidade, embora fosse contornável nesse caso e houvesse outra razão mais forte. Esse outro motivo acabou em 2022 e, em janeiro, resolvi passar o patrocínio para uma MEI minha. Silvia não gostou da ideia temendo que a mudança desse errado e eu perdesse a única renda que tenho, além do trabalho que ela teria.
Antes mesmo de abrir a MEI, procurei um banco digital cujo processo de abertura de conta parecesse menos difícil para mim, escolhendo o Cora SCD. Quem tem paralisia cerebral com ataxia e atetóide não consegue ficar imóvel justamente quando é estritamente necessário, como num reconhecimento facial para abrir uma conta. Foi preciso fazermos dezenas de tentativas para completa-lo, pois o algoritmo requeria que ficasse parado por um ou dois segundos. Ao entrar na conta, o aplicativo exigiu outro reconhecimento para habilitar o tablet, o qual primeiro tentei fazer sozinho, depois com a ajuda de Silvia e fracassamos. No dia seguinte, mandei um email ao Cora, que felizmente já tinha um procedimento adequado a quem não consegue parar – gerar um número válido numa única sessão de atendimento, o cliente anota-lo e tirar foto segurando o papel. Decidi autentificar o contrato com a “assinatura eletrônica” fornecida pelo governo federal, o que exigiu um terceiro reconhecimento facial – haja paciência! –, mas este foi fácil porque o algoritmo deve ter sido desenvolvido já pensando em quem tem tal dificuldade. Por fim, descobri um site gratuito para uma MEI emitir notas fiscais, mas demorei um dia e meio para conseguir acessa-lo porque os primeiros links para ele que vi estavam errados.
Cada um desses problemas foi muito estressante e cansativo para mim, e alguns me fizeram atormentar(!) Silvia. Porém, atingi meu objetivo, reduzi minha dependência, adquiri meios para fazer contratos no meu nome e percebi que ao menos algumas empresas e instituições estão se adaptando a pessoas com pouca coordenação motora.
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