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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Para Clara, tenho uma importância bem menor que a de Silvia, o que é natural pois não a alimento, banho, visto, as carícias que posso fazer são limitadas pelo risco de machucá-la. etc. O único momento em que Clara às vezes quer mesmo a minha presença, até chorando, é o do sono. Faço questão de botá-la para dormir por essa causa, para ajudar Silvia e porque, nas noites em que a diarista o faz, parece ser mais frequente Clara acordar depois.
Esse trabalho tem alguns efeitos penosos. À época em que balançava seu primeiro berço com as pernas, distendi os músculos da virilha, que continuaram doendo três ou quatro meses após parar de fazê-lo. Embalá-la no carrinho me dá dores musculares nas pernas – dependendo da posição na qual fico – e nos dedos da mão esquerda, os quais há muito criaram calos que às vezes se abrem, tornando-se pequenas feridas. Uma dessas dores foi tão persistente que pensei que era uma lesão por esforço repetitivo. Numa noite em que uma confusão fez Clara demorar muito a dormir, minha mão ficou assada como consequência do suor causado pelo estresse e tive de continuar a embalar para não agravar a situação.
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Possivelmente a maior questão existencial para quem tem paralisia cerebral e sua família é se há ou não déficit cognitivo – ou “deficiência intelectual”, na terminologia padrão – ou, caso negativo, como demonstrar que não existe. A suposição que tal déficit exista muitas vezes chega a níveis inacreditáveis. A psicóloga com quem fiz terapia trabalhou para uma escola inclusiva que tinha um aluno de dez anos com PC cuja mãe também era psicóloga e fazia trabalho voluntário para pessoas com deficiência, devido à experiência comigo ela se sentou na mesa dele e conseguiu se comunicar com o menino, mostrando que sua cognição não foi afetada, o que gerou uma forte comoção na mãe e no pessoal do colégio. Tive uma namorada virtual que estudava Psicologia que fazia um estágio numa clínica de reabilitação, a qual tinha um paciente com PC de 17 anos que ainda usava fraldas, pois sua família pensava que não aprenderia a controlar os esfíncteres, o que essa namorada ensinou em pouco tempo após perceber que o intelecto deste era normal.
Atribuir um déficit cognitivo imaginário pode ser um modo de denegrir a imagem de alguém com PC ou que tenha um filho com essa deficiência. Já vi duas amigas que trabalhavam em reabilitação terem tal atitude, no primeiro caso quanto a um rapaz que frequentou uma instituição da área, no segundo em relação à filha de uma pessoa de quem não gostava. Creio que não eram mentiras intencionais dessas amigas, e sim distorções na sua percepção causadas pela animosidade com essas pessoas.
Tenho dois amigos muito esclarecidos cujos filhos com PC têm déficit cognitivo, mas que parecem não falar disso de modo algum. Conheço pessoalmente o filho de um deles e o que me chamou a atenção foi a omissão desse aspecto da deficiência, mas só consegui concluir pela existência do déficit no filho do outro amigo analisando seu discurso.
O tipo de situação descrito no primeiro parágrafo é bem comum. Não sei com que frequência ocorrem as atitudes mencionadas no resto deste post.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Fomos a Fortaleza no fim de 2016, principalmente para minha família conhecer Clara. Já que Curitiba não tem paraquedismo, quis aproveitar para dar outro salto de paraquedas lá. Quando começamos a namorar, Silvia pensava em fazer o curso de paraquedismo, mas desistiu após o nascimento de Clara e queria que eu também parasse por causa desta, o que gerou discussões tensas em dezembro. Essa matéria da BBC mostra que o risco desse esporte é o mesmo que andar 400km de carro e provavelmente o estudo citado deve ter se baseado em médias mundiais – caso usasse estatísticas de trânsito brasileiras, tal quilometragem seria bem menor; se também forem considerados nossos índices de criminalidade, no cotidiano corremos riscos tão grandes ou maiores que num salto. Silvia teve “boca de praga” e, duas semanas antes de irmos a Fortaleza, o piloto do avião do salto sumiu – teve de ir resolver um problema pessoal no Rio Grande do Sul.
No início deste mês, fomos a Recife para batizar Clara e resolvi tentar de novo saltar. Na véspera do salto, tive uma diarreia feia – outra praga de Silvia? – da qual só me curei ao sair para o aeródromo, acompanhado por um casal de amigos. Foi um dia muito nebuloso, desde que saí de casa olhava para o céu, via as nuvens e achava que não conseguiria saltar. Esperamos seis horas para as nuvens abrirem e porque havia outras pessoas na minha frente – uma destas sofreu uma tentativa de assalto com uma faca colocada no seu pescoço horas antes, o que exemplifica o que digitei acima sobre riscos. O cinegrafista ficou impressionado com minha calma durante a ascensão do avião, ignorando que o pior momento para mim é o de sair deste – nessa hora pensei “ai, meu Deus, para que fui inventar isso?!”. No fim, acabei vencendo todos os obstáculos e tendo mais uma experiência emocionante e intensa.
E para horror de Silvia, quero que Clara salte de paraquedas!
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Horas atrás, enquanto estava sendo embalada por mim no carrinho Clara se sentou duas vezes, falei para se deitar emitindo um grunhido incompreensível, ela entendeu e me obedeceu. Foi a primeira vez que ela compreendeu o que falo.
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Na noite desta terça, Clara acordou chorando descontroladamente e nada do que fazíamos a acalmava. Eu já estava pensando que Silvia devia leva-la ao hospital quando notei que parava de chorar ao tomar água e voltava no momento em que a mamadeira era retirada, o que me levou a achar que poderia ser fome, apesar de ter se alimentado antes de ir para o berço, e dizer para Silvia preparar uma de leite. Após toma-lo, Clara foi tranquilamente para o carrinho e dormiu embalada por mim. Hoje de manhã, ao contar isso para a empregada, Silvia disse “Ronaldo tem instinto maternal, é um pai com intuição de mãe”. Prefiro dizer que homens também podem ser intuitivos.
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Uma grande rede de TV está querendo convencer seu público que, para alcançar seus objetivos, basta alguém se esforçar o suficiente independente do contexto social, econômica, político, etc, e qualquer problema neste acabará se todos fizerem individualmente o mesmo. Cortei nossa TV por assinatura, venho sendo obrigado a ver um pouco a aberta e me parece que pessoas com deficiência e, sobretudo, para-atletas têm um papel de destaque nesse esforço ideológico. Independente da mídia, muitas dessas pessoas, seus familiares e amigos adotam essa, digamos, ideologia da superação – p. ex., minha melhor amiga queria que o tom do blog fosse este. Alguns, ao contrário, criam aversão a tal ideologia, pertenço a esse segundo grupo e de vez em quando a critico aqui – outro exemplo dessa aversão é essa palestra de Rafael Bonfim. Evito o máximo digitar nesse tom, falando dos problemas, dificuldades e fracassos que contínuo a ter, para transmitir que sou um ser humano em vez de um super-herói e, assim, não colocar um peso extra nos leitores do blog que tenham deficiência.
Fui tão bem na equoterapia que a equipe do CEEQ – o vídeo abaixo mostra a emoção de sua diretora com meu progresso inicial – cogitou me mandar para a paraolímpica de hipismo. Nunca tiveram tempo de tentar fazê-lo, mas a ideia não foi adiante também porque não gostei. À época, fazia natação e fisioterapia, nos dias em que a équo se combinava com uma dessas atividades chegava em casa exausto e, até me acostumar com esse ritmo, muitas vezes quase tinha um mal-estar. Não compartilho dos ideais olímpicos, não gosto do hipismo como esporte nem queria passar anos de treinamento enfrentando aquela exaustão diariamente, exceto no caso improvável do patrocínio ser muito bom.
Muita gente acha extraordinário que eu salte de paraquedas, mas comecei a fazer isso justamente ao constatar que tinha todas as condições para tanto, não havia grande obstáculo algum para superar, era questão só de dinheiro e alguém que me levasse. Há muito tempo, pessoas com deficiência saltam e é fácil encontrar vídeos delas no YouTube.
Como já disse noutro post, se a minha condição socioeconômica fosse inferior à de classe média possivelmente já teria morrido. Mesmo se tivesse escapado, só por milagre desenvolveria as características que me tornaram atraente para algumas mulheres, incluindo Silvia.
Acho que nunca pensei em me superar, o que sempre quis foi só ter uma vida melhor, frequentemente sem acreditar que conseguiria e, na medida em que aconteceu, jamais foi exclusivamente por meu esforço individual. Este é imprescindível, mas há inúmeros problemas econômicos, sociais, culturais, etc, que dificultam a vida de quem tem deficiência e acabam escondidos pela ideologia da superação, jogando inteiramente a culpa pelo insucesso em pessoas isoladas. O blog acabou sendo uma modesta tentativa de influenciar num desses problemas – o que a sociedade pensa a nosso respeito –, cujo alcance é pequeno.
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Ontem, uma funcionária do posto de saúde no qual Clara costumava ser vacinada veio aqui em casa para verificar se o calendário de vacinas desta estava sendo cumprido – Silvia a tem vacinado noutros lugares. Silvia aproveitou para perguntar como posso tomar a vacina contra pneumonia lá, trocou as bolas falando que sou o marido de Clara e depois se corrigiu. Quando eu desci da cadeira em que uso o computador e fui engatinhando tomar água, aquela perguntou o meu nível de instrução, sem saber direito o que responder Silvia disse que é primeiro grau incompleto – na verdade, formalmente sequer cursei a alfabetização – e pensei “pronto, agora ela vai pensar que sou um analfabeto funcional”, alguém muito pouco inteligente. A funcionária chamou a paralisia cerebral de doença, o que me deu vontade de dizer “quem tem doença é a mãe”. Creio que aquela saiu daqui achando que Silvia seja louca e/ou tarada – quando comentei isso, ela brincou que aquela pode estar certa. Talvez tenhamos dado um nó na cabeça da funcionária!
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Clara começou a andar em julho, o que foi uma alegria para nós – fiquei emocionado quando caminhou na minha direção pela primeira vez. Antes, às vezes eu conseguia cuidar desta até por três horas, o que ficou bem mais difícil, pois passou a querer andar segurando na mão de alguém – agora está dispensando esse auxílio –, que tinha de caminhar encurvado, forçando as costas. No fim do mês, teve uma infecção de garganta e ouvido que demorou a ser diagnosticada corretamente, dormiu mal várias noites e obviamente nós também. Tal situação deixou Silvia muito mais cansada.
Tenho insônia, dependo de um ansiolítico para dormir, na última quinta do mês precisei de uma dose extra, quando comecei a sentir sono Silvia, contrariando meu conselho, foi cobrir Clara e a acordou. Embalei esta várias vezes, quase caí de sono em alguns momentos, mas sempre não ficava no berço. Silvia resolveu tentar botá-la para dormir, aproveitei para ir ao banheiro e o pouco barulho que fiz a despertou. Aí Silvia me deu uma bronca e a sorte foi eu não poder falar, senão teria quebrado o pau com ela. Clara acabou dormindo no carrinho após ser embalada de novo por mim e eu, ao lado, no sofá até de manhã.
>No último domingo de julho, ficamos sozinhos com as três meninas e, pelos fatores citados no parágrafo, Silvia quase teve um esgotamento. O estresse resultante me fez ter um início de sensação de desmaio em alguns momentos. Concluímos que a situação tinha de mudar. Decidimos que Clara passaria oito horas no berçário em vez de quatro. Também comecei a pagar uma diarista para nos ajudar aos domingos. E agora que consegue andar sozinha, parece que Clara vai demandar menos de Silvia.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Silvia tem uma grande, talvez excessiva preocupação com a saúde das pessoas que ama e o frio, atitude que me lembra minha mãe – será que Freud explica? Na noite da última terça-feira, apesar da babá eletrônica mostrar que fazia 25ºC no quarto de Clara, ela viu que a perna desta estava descoberta, quis ir lá cobrir, insisti que não fosse – até por saber que ia sobrar para mim se Clara acordasse –, mas foi mesmo assim e a despertou. Desde o fim da amamentação, raramente Silvia consegue adormecer Clara, o que faço quase sempre. Nessa noite, talvez por ansiedade minha para dormir sem esperar que seu sono se consolidasse ou Clara estar tossindo e com dentes nascendo, por três vezes a fiz dormir no carrinho, chamei Silvia para botá-la no berço e esta acordava de novo. Em torno da 1h Silvia começou a se desesperar, desisti de voltar para cama, a mandei dormir – se um de nós tiver de ficar sem sono, é melhor ser eu porque a carga de Silvia é muito maior do que a minha –, a embalei mais uma vez e cochilei uns 40 minutos no sofá, até ela se levantar e conseguir que Clara ficasse no berço de vez. No resto do dia, fiquei pensando nas noites em claro que minha mãe passou cuidando de mim, principalmente em crises de asma – jamais imaginei que, com todas as limitações que tenho, enfrentaria situações parecidas com minha própria filha!
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ontem, fiz um ecocardiograma de rotina acompanhado por Silvia. Fui atendido 45 minutos após o horário marcado, o que nos preocupou de voltar para casa a tempo de aprontar Clara para ir ao berçário. Quando fui chamado, a enfermeira passou a fazer uma série de perguntas idiotas visivelmente na suposição de que tenho deficiência cognitiva – todas foram dirigidas a Silvia sem dar uma palavra comigo. Resolvi encerrar aquelas perguntas e poupar nosso tempo dizendo com a prancha de comunicação “sou o marido dela(de Silvia)” – num instante, a enfermeira fez uma expressão de embaraço, calou-se, foi fazer seu trabalho e comecei a rir. Durante o exame, esta só falava comigo usando diminutivos, como se eu fosse uma criança, e fiquei contendo o riso para não cair na gargalhada. Às vezes, acho hilários os estereótipos e preconceitos sobre quem tem paralisia cerebral.