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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ao embalar Clara no carrinho em vários horários no dia, faço com o braço esquerdo, centenas de vezes, um movimento semelhante ao de um remador, frequentemente sem poder parar sob pena de ela não dormir ou acordar, mesmo quando estou morrendo de sede ou precisando ir ao banheiro com urgência, e já noto diferença de musculatura entre os dois braços – no direito, a coordenação motora não é suficiente para a tarefa. Por isso, hoje me senti um escravo de galé maneta
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Neste blog, tento mostrar que uma paralisia cerebral severa não é o fim do mundo, não impede necessariamente quem a tem de rir, ter humor, alegria de viver, namoros, filhos e até saltar de paraquedas. Alguém que consegue essas e outras coisas não vira um super-homem, vencedor, herói, melhor que os outros em algum sentido. Por esse motivo, também escrevo sobre as dores físicas, problemas, dificuldades e preconceitos que a PC me causa. Fisioterapia, equoterapia, fonoaudiologia e outros tratamentos melhoram substancialmente a condição de quem os faz, mas cedo ou tarde atingem um limite a partir do qual passam a ter a função de evitar regressão, não fazem a PC desaparecer – muito menos a “curam” e falar como se fosse uma doença é uma grande ofensa às pessoas nessa condição. Não se supera, não se vence a PC, que fará parte da pessoa durante toda a vida e o que se pode fazer é conviver com ela do melhor modo possível.
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Na semana passada, fomos dar uma olhada no Natal do Paço da Liberdade sem pretender assistir todo o espetáculo. A organização do evento não se limitou a reservar um espaço privilegiado, na frente do Paço, para pessoas com deficiência, mas também colocou um funcionário para circular pela área circundante para procurar, informar e ajudar tais pessoas – foi a primeira vez que vimos esse tipo de providência. Decidimos ficar até o fim do espetáculo. O carro de Silvia ficou a uns 700m do Paço, no caminho de volta cruzamos com um grupo gritando em uníssono, ficamos preocupados – pensei que era uma torcida organizada e Silvia, uma gangue –, mas nos tranquilizamos ao ver que o grito era “Jesus! Jesus! Jesus!”, comecei a rir e ela ficou contente porque imaginou que eu estivesse apreciando aquela manifestação religiosa – de fato, gostei de seu caráter diferente. Dois dias depois, expliquei que ri porque tive vontade de gritar “Satanás! Satanás! Satanás!”. Ao contar isso a nossa empregada, Silvia disse que ter um marido que não pode falar tem suas vantagens!
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Em geral, a paralisia cerebral causa deformações ósseas e distorce as expressões faciais, tornando muito difícil a quem a tem se encaixar em algum critério de beleza. Ainda assim, algumas pessoas com PC preservam sua beleza senão no corpo, ao menos no rosto, mas o preconceito de que isso é impossível é tão forte que acabam o introjetando a ponto de não crerem no que veem no espelho. Ao longo da minha vida, às vezes alguém me achava bonito e eu nunca acreditava; quando recebia uma sugestão para melhorar minha aparência, em geral dava de ombros pensando algo como “besteira, sou feio mesmo e nada que possa fazer vai mudar isso”– na prática, tomava uns poucos cuidados com a aparência; e, em certa fase, ficava escrachando minha aparência diante do espelho.
Todo mundo considera Clara linda e, sobretudo após recuperar uma foto de quando eu tinha uns sete meses nos braços da minha mãe, muito parecida comigo. Quando postei no Facebook uma foto de Silvia com Clara nos braços, ninguém menos que minha melhor amiga falou como se a beleza desta fosse uma herança exclusivamente materna e, naquela primeira foto, como se os genes da beleza – nem sei se existem – tivessem sido transmitidos diretamente da minha mãe para nossa filha, sem passar por mim!
Ao discutirmos essa questão meses atrás, me surpreendi com Silvia dizendo “se não lhe achasse um gatinho eu não estaria com você” – ela deve ter dito que me acha bonito muitas vezes antes, mas como também falava que não procurava beleza nos homens, tais elogios passaram despercebidos. Há algumas semanas voltamos à questão e ela lembrou que suas filhas também me acham bonito e que crianças não mentem a esse respeito. Se Clara é linda, é porque ambos pais – embora especialmente Silvia – são bonitos.
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Abaixo, está a íntegra da entrevista que dei à revista Bem Vindo A.Nó.S, em fevereiro deste ano, exceto as perguntas sobre meus dados pessoais, omitidas por motivos de segurança.
Bem Vindo A.Nó.S. Conte sua trajetória profissional?
Ronaldo. Quando me mobilizei para tentar trabalhar, a ideia inicial era prestar algum serviço como economista junto com um amigo que exerce esta profissão, mas o que acabei fazendo foram cartões de visita, algumas logomarcas e folhas de pagamento, impressos e digitação de textos, em sociedade com uma irmã minha, serviços cuja banalidade e baixa remuneração me desestimulavam bastante.
Em 1997, a irmã que era minha sócia passou a administrar uma loja de roupas e gradualmente deixou de trabalhar comigo, o que reduziu muito as atividades que podia fazer. No ano seguinte o coordenador de uma ONG que oferece cursos profissionalizantes gratuitos a pessoas com deficiência, sediada em Brasília, leu meu site, enviou uma mensagem dizendo que talvez pudesse me arranjar algum trabalho, respondi que isso era o que mais precisava, ele me pediu para fazer uma proposta para afazer a página dela – esse foi o primeiro trabalho grande que fiz sem minha irmã. Depois, dei algumas palestras, fiz alguns sites, trabalhos para estudantes universitários e outros “bicos”, de forma esporádica. Como não falo, tenho pouca coordenação nas mãos e, portanto, demoro para fazer a maioria das tarefas, além de não ter estudo formal, não tenho condições de aproveitar as poucas oportunidades de emprego que o mercado oferece para pessoas com deficiência. Passei uns dez anos sem trabalhar até criar, em 2014, o blog patrocinado Cérebro Pensante. Infelizmente, o blog só tem um único patrocinador e o valor que recebo é baixo.
Bem Vindo A.Nó.S. De onde surgiu a ideia do seu blog?
Ronaldo. Em 1998 fiz amizade com um empresário carioca – o sócio diretor da empresa que patrocina o blog – que viu meu site (não confundir com o blog), cujo pai tinha PC, e num momento muito difícil ele passou a me ajudar financeiramente, o que ele via como um prolongamento de seu amor pelo pai. Há dois anos, ele não pôde mais me ajudar informalmente e decidiu criar um blog patrocinado sobre PC. Era para ser um blog coletivo, cujo conteúdo seria produzido não só por gente com PC, mas também por pais, médicos, fisioterapeutas, etc, desde que os textos fossem sempre em primeira pessoa, que ele próprio iria arranjar, enquanto eu apenas ficaria com a administração do blog e só eventualmente escreveria. Na época, tinha parado de escrever há muito tempo, me sentia totalmente sem inspiração para tanto e fiz tudo para me esquivar de produzir o conteúdo. Porém, esse amigo nunca teve tempo para conseguir colaboradores e, contra minha vontade, acabei como o único responsável pelo blog.
Bem Vindo A.Nó.S. Qual é sua inspiração para os temas do blog?
Ronaldo. Meu cotidiano e, nos últimos meses, a mulher que amo. A intenção é mostrar uma pessoa com PC como alguém de carne e osso, com dúvidas, problemas, vitórias, conquistas, etc, inclusive abordando aspectos polêmicos e obscuros. O nome do blog é uma alusão à ideia de que pessoas com PC são incapazes de pensar. Me nego terminantemente a fazer o discurso da “superação” e a encarnar o papel de herói, super-homem, lição de vida e outros correlatos.
Bem Vindo A.Nó.S. Como é a receptividade do blog?
Ronaldo. Tem crescido muito.
Bem Vindo A.Nó.S. Qual o assunto que mais gostou de escrever?
Ronaldo. Os mais obscuros, desconhecidos.
Bem Vindo A.Nó.S. Na sua opinião, qual o tema mais polêmico que postou em seu blog?
Ronaldo. Sexualidade.
Bem Vindo A.Nó.S. Que mundo você espera que o seu filho cresça?
Ronaldo. Gostaria que minha filha vivesse num mundo menos desigual e mais tolerante.
Bem Vindo A.Nó.S. De que forma você enxerga a sociedade, atualmente, no passado, e no futuro?
Ronaldo. Nossa sociedade tem melhorado muito quanto a pessoas com deficiência em todos os aspectos, mas temo que no momento em que a direita cristã que tem dominado crescentemente a política brasileira perceba que não somos os anjos que imagina, haja um retrocesso.
Bem Vindo A.Nó.S. Qual a expectativa em relação ao futuro da inclusão no Brasil?
Ronaldo. Que melhore, mas isso não é uma certeza.
Bem Vindo A.Nó.S. O que você acha da acessibilidade no Brasil?
Ronaldo. Quando vim morar em Curitiba e pude compara-la a Recife, pude constatar o quanto a acessibilidade é desigual no nosso país – mas a grande desigualdade é a marca do Brasil sob todos os aspectos.
Bem Vindo A.Nó.S. Como você acha que a acessibilidade digital facilitou a vida social das pessoas com deficiência?
Ronaldo. Deu muitas mais oportunidades a elas.
Bem Vindo A.Nó.S. As pessoas encaram a deficiência de forma diferente? Após conhecer o seu blog?
Ronaldo. Sim, ficam surpreendidas e até encantadas.
Bem Vindo A.Nó.S. Deixe uma mensagem para os leitores da revista Bem Vindo A.Nós?
Ronaldo. As coisas não estão estabelecidas de vez para quem tem uma deficiência.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Embora boa, esta matéria da revista Bem Vindo A.Nó.S tem dois erros: este blog foi criado em 2014; e o segundo parágrafo mistura acontecimentos separados por mais de quinze anos – fiz o site de uma ONG (já extinta) no fim dos anos 1990.
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Hoje, enquanto Silvia fazia o almoço fiquei balançando Clara no carrinho durante 30 ou 40 minutos, tentando que esta dormisse para ver se conseguíamos comer com um pouco de sossego e tomar banho. Devido à coordenação insuficiente da musculatura envolvida na respiração e na deglutição, durante as refeições às vezes entra comida no meu nariz, em geral causando o reflexo de espirrar. Dessa vez, entrou um pedaço de macarrão, fiquei vários minutos inspirando com força para ele voltar à boca e fazendo de tudo para evitar o espirro, para não acordar Clara. Silvia acabou dizendo “coitadinho, não pode nem espirrar!”.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
É raríssimo alguém com paralisia cerebral severa se casar, ainda mais com uma mulher linda e bem-sucedida, e ter filhos. Além dos méritos e esforços próprios e dos meus pais, tal sucesso deve-se a haver tido os privilégios e recursos da classe média; se tivesse uma condição socioeconômica inferior, provavelmente não teria me alfabetizado por mais inteligente que fosse, seria de fato motoramente paralisado e talvez tivesse morrido das doenças respiratórias acarretadas pela PC. Ainda mais difícil seria desenvolver o hábito da leitura e um alto nível cultural.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Nunca consegui ter uma profissão e, na maior parte da vida, não tive renda, embora esta tenha aparecido e aumentado nos últimos anos. Tive uma casa nos anos 1980, doada por um tio, e uma quantia de valor equivalente em 1998, mas perdi ambas – no primeiro caso, nada havia que eu pudesse fazer, mas no segundo foi incapacidade de dizer “não”. Escrever para este blog é um trabalho remunerado do qual passei a gostar, mas o patrocínio é pequeno, não consigo outros e colocar publicidade nele só o poluiu. Devo perder minha principal fonte de renda no próximo ano. Agora que tenho de participar das despesas de uma casa e de criar uma filha, me ressinto muito desses fracassos.