Mudança de Apartamento
Nunca gostei do apartamento em que moramos por ser pequeno, me sentir apertado. Já Silvia o adora por minimizar o frio do inverno e está passando a fase mais feliz da sua vida nele – minha associação da felicidade é com Curitiba. Mas, por segurança, quer que as meninas namorem em casa em vez de precisarem sair para fazê-lo e simplesmente não há como terem privacidade aqui devido à pequenez do imóvel. Assim, decidimos trocar de apartamento.
À priori o novo deveria ser em Curitiba, mas não encontramos um que atendesse aos nossos requisitos e coubesse no orçamento. Em 2022, passamos um dia em João Pessoa e uma vizinha teve de se mudar para essa cidade, o que fez Silvia procurar imóveis lá, notando que os preços estavam bem menores e havia apartamentos imensos, e soubemos que é o destino de uma migração de classe média. Além disso, Silvia espera que adoeçamos menos lá, embora eu venha insistindo que há uma boa dose de ilusão nessa expectativa. E o custo de vida é bem menor. Por tais motivos, vamos morar num apartamento em Cabedelo, na região metropolitana de João Pessoa, 60% maior.
Este tem sido um processo tumultuado – houve dias em que todos da família brigaram entre si –, a começar pelo fato de inicialmente eu não queria sair de Curitiba. O que me fez mudar de ideia foi – além da vontade de mais espaço e reduzir muito nossas despesas – uma viagem que fizemos a João Pessoa em agosto (quando foi feito o vídeo) para ver os apartamentos, a qual mostrou que grande parte das minhas objeções à mudança era infundada. Ainda assim, os meses seguintes foram de muita tensão, a qual somatizei de modo descontrolado – não era porque não gritava, pouco expressava irritação ou raiva, etc, que não estava desequilibrado. Talvez o maior motivo desse desequilíbrio – que só acabou perto do Natal – tenha sido que fui o principal responsável pela engenharia financeira, incluindo planos de contingência para cenários pessimistas. Também me preocupa que Silvia sofra um esgotamento no período inicial, o que fez dois irmãos meus se comprometerem a irem a Cabedelo para nos ajudar. Silvia está toda animada e cheia de planos e eu, nem tanto, até por ver aspectos duvidosos nestes. Por outro lado, às vezes ela e as irmãs imaginam que podemos desgostar tanto de João Pessoa que vamos querer voltar a Curitiba, enquanto acho que não há risco de ser tão ruim assim.
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Retratos da Paternidade
Tenho o que li dois antropólogos chamarem de pessimismo alegre, que dizem ser típico dos índios. No meu caso, é uma combinação do “pessimismo da razão” – em qualquer momento acho que há uma probabilidade não desprezível de haver um desastre –, humor cearense que absorvi dos meus primos e uma grande facilidade de rir. De vez em quando, fico admirado por Clara ser bem alegre e brincalhona e acho que eu ser risonho a ensinou a ser assim.
Clara sempre teve dificuldade de me beijar no rosto, por não gostar de ser espetada por minha barba e ter levado algumas trombadas involuntárias de mim. Na última terça, num momento em que eu estava com raiva, irritado, ela superou tal barreira e passou o resto da noite me beijando, para minha felicidade. E já aprendeu o truque de, quando dou uma bronca, usar seus beijos para me amansar – que cara de pau!
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Irmão da Filha
Venho chamando Clara para descer comigo durante as sessões de fisioterapia para tirá-la um pouco dos dispositivos eletrônicos. Na penúltima segunda, entrei com ela no colo na sala de pilates, na qual estava uma senhora que esperava uma amiga que mora no condomínio acabar a ginástica. Minutos depois, ao notar que eu olhava, cuidava de Clara essa senhora perguntou a minha fisioterapeuta se era seu irmão, o que me fez rir achando simultaneamente engraçado e ridículo – é comum pensarem que sou filho das minhas amigas e namoradas, mas irmão da minha filha foi a primeira vez! Acontece que, como mostra a foto, se isso ocorresse quando ela nasceu, seria até plausível pois eu parecia ter uns 20 anos (tinha 52), mas agora, sete anos depois, na melhor das hipóteses devo aparentar uns 40 anos e é improvável que uma mulher tivesse dois filhos com tanta diferença de idade. Após perceber mais uma manifestação da imagem infantil de quem tem PC, o aspecto cômico se dissipou e o ridículo, ficou ressaltado.
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Maldade (ou Bondade) de Pai II
Nunca mais Clara acordou Silvia durante a noite só para cobri-la e outras coisas desnecessárias. Agora ficou nítido que a razão para eu demorar tanto para resolver esse problema, além da minha incapacidade física de intervir intempestivamente, era que, no fundo, Silvia gostava dessa situação de dependência – algo bem comum em mães – apesar de prejudicar a ambas. Na verdade, Silvia já tinha apavorado Clara algumas vezes falando da própria morte, das quais a primeira foi involuntária – estava conversando com a segunda filha sobre o falecimento do ex-marido – e as posteriores, reproduzindo um comportamento da própria mãe, sem um propósito útil. Diferentemente, eu nunca tinha usado esse argumento – até por ser um dos meus próprios pesadelos –, foi um bom motivo, que Clara compreendeu perfeitamente, falei a verdade – a qualidade do sono influi na expectativa de vida – e, pelos comentários bem-humorados que depois fez sobre o episódio, esta não ficou com trauma algum. A maioria dos psicólogos que lerem o último post deve desaprovar o que fiz, mas crianças que às vezes não são confrontadas com seus medos tendem a se tornar adultos frágeis. Quando a suavidade não funciona, é preciso ser radical.
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Maldade de Pai
Quase toda noite Clara chama uma ou várias vezes Silvia apenas para cobri-la ou outras coisas desnecessárias, o que deixa esta mal durante o dia seguinte pela privação de sono. Já faz um ou dois anos que tento resolver a situação, usando o Livox para explicar a Clara como isso faz mal à sua mãe, prejudica a saúde desta, etc, e pedindo (inutilmente) para Silvia brigar com nossa filha no momento em que o problema ocorre (meu lento tempo de reação me impede de faze-lo), só obtendo um sucesso temporário. Nesta quinta, após passar mais um dia vendo Silvia sofrer pela falta de sono, decidi que se não ia por bem, ia por mal: sabendo que, desde que tinha um ano, Clara fica apavorada com qualquer ameaça à integridade física, à vida dos pais por mais distante que seja, digitei um texto para ser falado no Livox cuja última frase foi “se você não quiser que sua mãe morra logo, pare com isso”, a qual fez Clara se assustar, começar a chorar, ir dizer a Silvia que não queria que esta “virasse estrelinha”, etc. Silvia não gostou do que fiz, mas já faz duas noites que Clara toma todo o cuidado para preservar seu sono, embora seja cedo para saber se houve uma mudança permanente.
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Exercícios Rotineiros
Estes são os exercícios que mais rotineiramente.
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Fisioterapia XVI
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Ken Cadeirante
Embora Silvia faça muito, muitíssimos mais que eu, há algumas tarefas e atividades que podem ser feitas por nós dois. Entre estas estão compras em farmácias, frutarias e supermercados, sobre as quais vivemos num permanente cabo-de-guerra e até brigamos para assumi-las. Por outro lado, às vezes penso que um dos elementos de sua atração por homens com deficiência é evitar qualquer chance de dominação, de sofrer com o machismo – é só uma especulação. No início do nosso casamento, quando ainda não sabia direito até onde iam minhas limitações e num momento em que estávamos meio brigados – o motivo era a causa mais frequente de dissentimento entre casais (adivinhe...) – Silvia se irritou porque peguei um guardanapo para limpar minha boca – ato trivial até para mim – em vez pedir a ela e, para provoca-la e aumentar sua irritação, respondi “você queria um homem dependente e submisso” No último domingo à noite, ao comentar o filme homônimo Silvia falou “eu brincava de Barbie saindo, indo trabalhar, fazendo todo tipo de coisa enquanto o Ken ficava em casa, fazendo o supermercado ...”, fala que interrompi com uma reação invocada, de indignação, embora também de riso – na hora não me ocorreu nenhuma palavra à mente, mas poderia ser expressa como “então era para isso que você me queria?! Para ser dono de casa? Que sacanagem!”
Para evitar mal entendido, só estou tirando onda, não há dominação ou submissão alguma no nosso relacionamento e continuarei teimando para assumir as referidas tarefas.
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Fisioterapia com a Filha VII
Ontem, enquanto estávamos voltando ao apartamento minha fisioterapeuta fez uma série de perguntas a Clara (no meu colo), cujas respostas podem ser resumidas como “vou cuidar de papai e mamãe, vou morar com eles para sempre e não vou me casar”. Fiquei incomodado porque é justamente o que não quero que ela faça, assim como Silvia. Procurei me tranquilizar lembrando que, meses atrás, os planos dela eram casar e ter dois filhos
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Filha Superprotetora
Clara sempre se assustou com qualquer ameaça aos pais. Ela fez sete anos no dia 29 e comemoramos num parque de diversões pequeno e coberto, o qual tem uma sala para cantar os parabéns e os adultos ficarem. Comecei a me entediar, resolvi sair de lá e dar uma volta no parque sozinho – o chão era liso e não tinha obstáculos a que eu movesse a cadeira de rodas com os pés. Clara ainda não está acostumada a que eu ande por aí sem o cuidado de Silvia – exceto para a fisioterapia –, ao me ver preambulando pelo parque sem ninguém praticamente entrou em pânico, contagiou alguns amigos e, juntos, me reconduziram àquela sala – como não podia usar a prancha de comunicação com eles e fazer força talvez os machucasse, não opus resistência; esse processo se repetiu várias vezes até que, na última volta que dei, ela não se importou mais. Passei a maior parte da vida lutando, brigando contra a superproteção da família, especialmente minha mãe, a tal ponto que vir morar em Curitiba foi, entre inúmeros outros motivos, uma forma inconsciente e bem radical de acaba-la, e agora estou enfrentando o mesmo problema com minha filha – é lasca!
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